Homo Urbanus
A
vida, nas grandes metrópoles, apresenta-se de forma muito diversa
para as pessoas, dependendo de uma série de fatores e da realidade
pessoal de cada uma. É, por exemplo, “suportável” para quem
tenha nascido nelas, “insuportável” para os amantes da natureza
e “indispensável” para uma certa casta. uma “subespécie” do
Homo Sapiens, não classificada por nenhum antropólogo, mas que
poderia ser chamada de “Homo Urbanus” ou algo que o valha.
No
primeiro e no terceiro casos estão, óbvio, os que não conhecem
outra forma de habitar, trabalhar e conviver, por terem sido
condicionados, desde tenra idade, a morar encaixotados em minúsculos
apartamentos com escassa ou nula privacidade, a se espremer em
inseguros e sacolejantes ônibus para ir ao trabalho, a enfrentar
desgastantes engarrafamentos de trânsito quando possuem os próprios
carros, enfim, a passar por todas as torturas, inconvenientes e
perigos que constituem o cotidiano do homem urbano.
Há,
entre estes, todavia, quem, nem mesmo remotamente, conceba outro tipo
de vida. Não cogitam, de forma alguma, em abrir mão das inúmeras
facilidades e confortos que não encontrariam no campo, numa fazenda,
num sítio ou numa chácara, por melhor aparelhados que eles sejam.
Estes se sentiriam perdidos e não conseguiriam sobreviver, sequer,
digamos, uma semana, sem o magnífico aparato urbano ao seu dispor,
com opções para praticamente todos os gostos e necessidades. Dos
que tiverem, claro, recursos para pagá-los. Nem todos têm. Aliás,
os que podem são minoria.
Cito,
como exemplo desse caso, um amigo pelo qual tenho grande apreço, que
raramente deixou a cidade onde ambos moramos para nada e que, num
determinado dia, aceitou, para minha surpresa, convite que lhe fiz
para passarmos um fim de semana no sítio de um parente meu pelo lado
de minha mulher. A viagem para o local foi tranquila, apesar dos
solavancos do carro nos inúmeros buracos do arremedo de estrada que
tivemos que tomar. Isso não era novidade nem para ele e nem para
mim.
Ao
chegarmos ao tal sítio, dos mais confortáveis e modernos, com
eletricidade e água encanada, raridades em muitas propriedades
rurais do tipo, notei que meu acompanhante se sentia perdido,
angustiado e, sobretudo, entediado com a calma, a tranquilidade e o
silêncio do local em que estávamos. Não que não houvesse ali o
que fazer. Havia, e muito. O sítio tinha (ou na verdade tem, pois
ainda está lá no mesmo lugar), entre tantas benfeitorias e
facilidades, um extenso pomar, com vários tipos de árvores
frutíferas, uma horta muito bem cultivada, um estábulo e até um
jardim bastante florido em frente à casa.
Em
vez de acompanhar-me num passeio pela mata dos arredores, que tinha
um riacho tranquilo e cristalino, que em certo ponto despencava numa
cascata, meu amigo optou por não sair. Pensei que se tratasse de
cansaço da viagem e deixei-o em paz, pensando em convidá-lo mais
tarde para a exploração da propriedade. Fiz isso algumas horas
depois, tempo mais do que suficiente para que descansasse. De novo,
recusou. Preferiu ficar na casa, vendo televisão. Assistiu a todos
os programas, até os mais chatos (e põe chatos nisso!), que tanto
detestava. A todo o momento, sugeria que voltássemos para a cidade,
alegando um sem número de motivos, todos sem nenhum sentido.
À
noite, não conseguiu conciliar o sono e seus passos monótonos e
repetitivos pelos cômodos afora impediram-me, também, de dormir.
Pela manhã, ambos com olheiras pela noite mal dormida, indaguei-lhe
o que estava acontecendo. “Não consigo dormir sem o barulho dos
carros em frente à minha janela”, foi sua surpreendente resposta.
Ou seja, aquilo que para mim sempre foi um tormento, no caso a
enlouquecedora barulheira urbana, aos seus ouvidos soavas como suave
melodia, como doce canção de ninar.
O
amigo “viciado em cidade” tanto insistiu, que naquela mesma manhã
voltamos para a loucura e agitação da metrópole, da qual eu não
via a hora de fugir e ele não a via de “voltar” . E nunca mais
ele aceitou convite meu, e nem de qualquer outra pessoa, para um
“passeio no campo”. Há muita gente assim. Essas pessoas nasceram
e provavelmente morrerão na grande cidade em que habitam ou, no
máximo, em alguma outra com características parecidas.
Conheço
crianças que jamais viram, ao vivo – a não ser na televisão e em
gravuras de livros – animais domésticos como vacas, cabras,
cavalos e ovelhas. Algumas não viram de perto, vivas, nem mesmo
galinhas! As que viram, todas, já vieram assadas e devidamente
temperadas para consumo. Estas, quando crescerem, provavelmente
agirão como o meu amigo. Terão fobia pelo campo, ou quase isso.
Há,
todavia, os que consideram a vida nas grandes metrópoles
intolerável, ou quase. Sou um desses casos. Essas pessoas não veem
a hora de escapar dessas “arapucas”, para um contato mais
estreito com a natureza. Sonham com o dia em que possam juntar
dinheiro suficiente para comprar, se não uma fazenda, pelo menos
algum modesto sítio ou, até mesmo, uma pequena chácara. Alguns
conseguem. A maioria... não.
Eça
de Queiroz, no romance “A cidade e as serras”, faz a seguinte
observação, através de um de seus personagens: “Só uma estreita
e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais que ela cria. O
resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos
especiais que só nela existem”. Exagero do escritor? Longe disso!
Quem
não contar com o condicionamento de encarar as dificuldades e
agruras que estas imensas selvas de cimento e asfalto, barulhentas,
agitadas e poluídas, apresentam ficará à margem das pequenas
coisas ao seu redor, que existem mesmo nas mais caóticas megalópolis
e que na aparência são insignificantes, mas que, na verdade, são
as que importam para que alguém seja feliz. A felicidade, afinal de
contas, não é nunca contínua. É constituída de momentos
especiais, de instantes mágicos, imortalizados na lembrança. Se
possuísse continuidade, em pouco tempo viraria rotina. Provocaria o
tédio. E não seria, portanto, felicidade. Podemos ser felizes em
qualquer lugar. Em cidades ou fora delas. Mas...
Em
outro trecho do seu romance, Eça de Queiroz escreve: “Alegria como
a haverá na cidade para esses milhões de seres que tumultuam na
arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o desejo,
incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os
sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam!
(...) São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa
arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além
brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada
violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na
hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata
apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate
da rivalidade ou do orgulho”.
Sei
que muitos de vocês, a esta altura, estão discordando da minha
posição e até achando que exagero em minhas colocações. Alguns
são sinceros em sua discordância e é possível que sejam como meu
amigo, incapazes de apreciar e gozar dos encantos da natureza ou de
prescindir, mesmo que por apenas um ou dois dias, das facilidades e
do conforto urbanos. Respeito sua posição e até sua opção.
Muitos, porém, mesmo discordando, fazem-no só “da boca para
fora”. No fundo, no fundo, certamente, estarão sonhando com aquela
fazendinha, ou com aquele sítio, ou mesmo com aquela chácara que
tanto querem, mas cujo desejo não revelam a ninguém.
Nas
selvas de cimento e asfalto, que são as grandes cidades, o indivíduo
que não seja natural delas perde suas raízes culturais, seu
referencial, seus valores enquanto ser pensante. Sequer consegue se
concentrar em seus objetivos pessoais mais profundos, para correr
atrás da fortuna (na maioria das vezes nem disso, mas somente da
mera sobrevivência material), da posição social, do poder e de
algo muito vago que se convencionou chamar de “sucesso”, cujas
definições do que seja variam de pessoa para pessoa.
Nada
disso, todavia, tem valor, se passado pelo crivo de qualquer análise,
por mais superficial que seja. A felicidade está nas pequenas
coisas, aparentemente triviais e sem importância, mas que são as
que, de fato, importam. Como Mário Quintana afirmou num dos seus
mais deliciosos poemas, ela é como os óculos, que procuramos por
toda a parte, mas que no final das contas estão em nosso rosto,
pouco acima do nariz.
Boa
leitura!
O
Editor.
Assaltos violentos avançam nas fazendas, sítios e chácaras. Além dos mosquitos e da febre amarela, ainda sobram torturas e assassinatos. Ficou mais difícil, mas eu gosto de fazer uma caminhada em ambiente rural. Quando escurece, eu quero voltar para casa.
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