Os
desafios da Amazônia no século XXI
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O estrondo da pororoca
é sempre espantoso, mas nós não arregamos. Éramos apenas três amazonenses para
enfrentá-la na mesa redonda "Os desafios da Amazônia no século XXI":
o poeta Aldísio Filgueiras, a ex-reitora da Universidade Estadual do Amazonas,
Marilene Corrêa e o tio do "Pão Molhado", que vem a ser este que
digita aqui essas mal traçadas linhas. Foi no Centro de Artes da Universidade
Federal Fluminense (UFF), em Niterói, quarta-feira, 7 de setembro, em pleno
feriado, com público seleto que foi ouvir os palestrantes "présentes"
no debate mediado pela jornalista Ana Lúcia Pardo.
O tio do "Pão
Molhado", que é monotemático, definiu a Amazônia como o conjunto de
línguas ali faladas, uma vez que historicamente língua e território, sempre de
mãos dadas, são um binômio inseparável. Todo o território pan-amazônico cabe
dentro das línguas que classificam, nomeiam, descrevem, avaliam, hierarquizam e
dão sentido a tudo que lá existe: flora, fauna, rios, seres encantados, gente,
narrativas, canções. Concluiu que o maior desafio da Amazônia é interromper o
glotocídio de cinco séculos e manter seu atual patrimônio linguístico formado
por mais de cem línguas indígenas e por várias línguas faladas em português. A
Amazônia está enraizada nessas línguas que lhe deram sentido.
Raízes da Amazônia
O palestrante contou
como iniciou seu interesse pelo tema, em 1966, quando saiu de Manaus para
cursar jornalismo no Rio. Na primeira aula provocou estrondosa gargalhada da
turma ao responder à chamada do professor. Intrigado, indagou o motivo do riso
e uma colega esclareceu: "A forma certa de falar é "prêsente",
com o "e" fechado". Quem fala "présente", com o
"e" aberto, é pau-de-arara". Foi aí que o tio do Pão Molhado
descobriu que trazia tatuado o mapa do Amazonas em seu sotaque e que qualquer
pessoa ao abrir a boca exibe, além dos dentes, o fígado, as tripas, seus
segredos íntimos, os recantos de sua alma, sua identidade.
Esta identidade
regional começou a ser discutida em dois livros fundamentais mencionados que
representam para a compreensão da Amazônia aquilo que "Raízes do
Brasil", de Sérgio Buarque e "Formação do Brasil Contemporâneo"
de Caio Prado Jr., significam para o país. O primeiro deles é O Complexo da
Amazonia (1976) de Djalma Batista, que rompeu com a visão galvãobuenamente
xenófoba de que a Amazônia é nossa e ninguém tasca e chamou a atenção para a pan-amazônia, território
compartilhado por nove estados nacionais, laboratório histórico para comparar o
processo colonial, na medida em que foi colonizado por portugueses, espanhóis,
holandeses, ingleses e franceses.
O outro livro A
Expressão Amazonense: do Colonialismo ao Neocolonialismo" (1977), de
Márcio Souza, deu visibilidade às culturas indígenas criminosamente apagadas
pela historiografia dominante. Para Márcio, A Amazônia é "um purgatório
onde culturas inteiras se esfacelam no silêncio e no esquecimento A Amazônia só
estará livre quando reconhecermos definitivamente que essa natureza é a nossa
cultura, onde uma árvore derrubada é como uma palavra suprimida e um rio
poluído é como uma página censurada".
Guardiões do atraso
O outro palestrante,
Aldísio Filgueiras, que iniciou a apresentação, nos faz pensar que o olhar do
poeta é sempre necessário para iluminar a realidade. Ele seduziu a plateia com
discurso irônico e bem humorado:
- "O maior
desafio da Amazônia no século XXI é o Brasil" - disse em tom provocativo,
argumentando que "o Brasil não se tem como um projeto nacional. Se existe
um Projeto Brasil, ele está sendo ditado há muito tempo pelo Fundo Monetário
Internacional e outros bancos que já submeteram à sua política perversa de
austeridade a Grécia, a Espanha, a França, a Itália e Portugal".
O poeta, que é membro
da Academia Amazonense de Letras, considera que "Manaus ou Belém, como
todas as capitais amazônicas, é a mais perfeita tradução do que hoje se
reconhece como desastre ecológico ou ambiental. Não fora algumas sobrevivências
dessa Amazônia que desaparece tanto do imaginário quanto aparece na realidade
(o açaí, o tacacá, o tucupi, o tucunaré, a tapioca, etc), a cara de Manaus, que
já se achou europeia, pode muito bem ser confundida com um acampamento de
refugiados africanos".
Ele criticou o recente
show "Amazonas Live" montado sobre palco flutuante em um braço do rio
Negro, com Plácido Domingo e Ivete Sangalo, "que parecia mais uma líder de
torcida do que uma cantora". O espetáculo visava criar condições para o
plantio de três milhões de árvores no Xingu, "como se a solução fosse
plantar e não parar de cortar". Mas
como parar de cortar - pergunta o poeta - "se o governo petista tinha
Kátia Abreu, a musa do agronegócio no Ministério da Agricultura, e o governo
golpista substituiu-a pelo campeão de desmatamento Blairo Maggi? Os dois não
podem ver um pau em pé, uma árvore, sem pensar em madeira".
- A Amazônia é um
arquipélago em que as ilhas não se comunicam, porque estão sob o poder dos
guardiões do atraso - ele diz, acrescentando mais adiante que "A Amazônia,
reflexo errado da realidade, foi criada por um erro de cálculo e sabemos que
erro de cálculo derruba viadutos, passarelas à beira-mar e outros acidentes
inflacionados pela propina".
Ato Criador
A terceira palestrante
Marilene Corrêa usou seus conhecimentos de pesquisadora reconhecida e sua
experiência como reitora e como secretária de ciência e tecnologia para
apresentar uma visão global sobre o desenvolvimento da Amazônia e suas
metamorfoses, a partir de uma perspectiva histórica e social, envolvendo a
questão indígena e os projetos sobre a região. Mencionou uma série de pesquisas
essenciais para conhecer a Amazônia profunda, ainda desconhecida dos
brasileiros, sobre os biomas, os ecossistemas, a cosmovisão, os saberes
ancestrais, a diversidade de línguas, ritos e manifestações culturais dos povos
da floresta.
O debate sobre a
Amazônia abriu a 10ª edição do Ciclo Ato Criador - Outros Possíveis, com uma
extensa programação que inclui encontros, palestras, debates, oficinas,
performances, saraus poéticos, instalações, intervenções e mostra artística que
acontecerão de setembro a dezembro, com a parceria do Consulado da França, da
Oi Futuro, da Petrobrás e de outras instituições. No mês de setembro, as
atividades estão integradas ao Festival Nacional de Cultura Popular -
Interculturalidades, realizado pelo Centro de Artes da UFF e o Ministério da
Cultura.
O evento que foi
aberto pelo Diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social e Superintendente
de Artes da UFF, Leonardo Guelman, contou com uma apresentação musical de
flauta de Michael Oliveira, nascido em Manaus, mas residente no Rio, que narrou
sua trajetória em busca da identidade indígena.
P.S. - Nesta
quinta-feira (8), aos 87 anos, morreu a professora Martha Aguiar Falcão, mestra
querida, professora da Universidade Federal do Amazonas, pós-graduada em
botânica, com vários trabalhos publicados imprescindíveis para a compreensão da
Amazônia. Deixa-nos saudosos. (A PASTORAL DA FRUTA http://www.taquiprati.com.br/cronica/604-a-pastoral-da-fruta
*
Jornalista, professor e historiador.
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