Brincar e brinquedos
* Por Harry Wiese
Brincar
é coisa séria. É tão séria que uma das funções da literatura é a função lúdica
do espírito. Tem a ver com a ideia da arte como jogo. O poeta é uma criança que
utiliza suas emoções, como um menino que edifica castelos na areia da praia, ou
faz bolhas de sabão no jardim. A comprovação está no excerto do poema de
Martins Fontes, “Inocência”.
“Criança ingênua, o dia inteiro,
com os meus caniços de taquara,
ficava eu, ao sol de então,
junto dos tanques, no terreiro,
soprando a espuma, leve e clara,
fazendo bolhas de sabão”.
De acordo
com Baudelaire, “A poesia é a infância que se encontrou de novo”.
Lembro-me
das brincadeiras e brinquedos da minha infância. Bom era fabricar o próprio
brinquedo e depois brincar com ele. Brinquedos comprados eram raros. Eram caros
ou não existiam como hoje.
Bom
também era acompanhar o processo de fabricação na pequena oficina do meu tio.
Ele fazia carrinhos de bois, caminhões, figuras de animais, tudo em madeira.
Algum tempo antes do Natal éramos proibidos de acompanhar seu trabalho. Tinha a
ver com os presentes. O barulho do vai e vem do serrote e as marteladas eram ouvidas
com satisfação e impunham certa magia: a de ser coisa boa. Pelo barulho também
tentávamos adivinhar o tipo de brinquedo que ele estava fabricando.
Fazer
o próprio brinquedo era fascinante. Era preciso sonhá-lo, planejá-lo e
executá-lo. Todo brinquedo tem origem no sonho. É uma coisa meio idêntica com a
filosofia de Platão: o mundo das ideias. Vou exemplificar: para brincar de
polícia e ladrão precisávamos de armas. Armas, quase de mentirinha, é verdade.
Fazíamos espingardas de ar comprimido. Sonhávamos com a arma quase de
mentirinha, íamos ao bambuzal escolher o gomo ideal do bambu, nem muito grosso,
nem muito frágil, o cortávamos e o lixávamos. Ainda era preciso o empurrador,
que era um bambu fininho que coubesse no espaço do bambu maior, um pouquinho mais
curto, pois a função dele era empurrar a laranjinha, bem apertada contra aquela
que ficava na outra ponta. O ar comprimido se encarregava de empurrar a laranja
para fora, dando um estrondo. Saía até uma fumacinha. Isso era fascinante. Essa
brincadeira somente poderia ser procedida na época em que houvesse laranjas,
caídas, evidentemente, caso contrário, a prestação de contas descambava em
broncas e castigos.
Para
nós, meninos, confeccionar o próprio estilingue era colocar
a gente nele. A funda, como também era chamada, tinha que ter a cara da gente.
O processo iniciava com a procura e seleção da forquilha. Ficávamos horas a fio
na capoeira à procura. Tinha de ser especial. A escolha da borracha também era
fundamental, pois ela dava a impulsão às pelotas de argila ou mesmo a pedras
redondas especialmente selecionadas nos caminhos das roças ou no raso dos
riachos. Os elásticos eram conseguidos nos postos de gasolina e oficinas
mecânicas, provenientes de câmaras de ar de carros e caminhões. As amarrações
das borrachas à forquilha e ao couro que segurava a pedra ou a pelota de argila
precisavam de justeza para que não recebêssemos uma boa pelotada na face.
Como
morávamos na colônia, era evidente que gostássemos de animais. Animais
quadrúpedes foram construídos com duas laranjas: uma maior que formava o corpo
e uma menor que constituía a cabeça. Eram interligadas com um pauzinho fino e
pontiagudo. Chifres, rabos e pernas também eram paus pontiagudos ou espinhos.
Assim formávamos animais de rara beleza e nos tornamos artistas sem saber.
Na
época da minha infância, muitos adultos que não tinham coragem para brincar, pois
todos os adultos têm uma criança dentro de si, começaram a fabricar brinquedos.
Fabricar brinquedos é uma forma de brincar. Este processo, principalmente,
coube às mulheres. As mulheres faziam as bonecas para as filhas. Dupla alegria:
a de confeccionar brincando e a perspectiva de brincar das meninas.
Brincando
a gente aprendia. Também brincávamos de trabalhar. Brincar de trabalhar é
diferente de trabalhar. Como brincávamos com os animais, era evidente que
necessitássemos de trabalhar. Trabalhar significava plantar e colher. Assim,
aos poucos tínhamos as nossas roças com milho, mandioca, batata e muitos outros
produtos. Ficávamos encantados vendo as plantas nascerem, crescerem e ficarem
maduras.
E
desta maneira, cresci e crescemos num mundo simples, mas fantástico. Formamos a
nossa base, nossa estrutura e o nosso futuro. O trabalho com prazer na vida
adulta está alicerçado na forma de brincar na infância.
Como
a literatura também tem a função lúdica do espírito, tenho certeza de que bons
escritores e bons poetas são aqueles que conseguem transformar textos em
brinquedos. Quem consegue esta proeza terá leitores de todas as idades, pois se
engana quem pensa que adultos não brincam. Brincar é coisa séria!
*
Poeta, escritor e professor, autor dos livros “Meu canto-amar”; “Girata de
espantos”; “Nebulosa de amor”: “Contos e poemas de Natal”; “A sétima
caverna”,”De Neu-Zürich a Presidente Getúlio: uma história de sucesso”; “A
inserção da língua portuguesa na Colônia Hammonia”: “Terra da fartura: história
da colonização de Ibirama”: “Teoria da Literatura”: “IbirAMARes e outros
poemas” e “A história das árvores-homens e outras crônicas”. wiese@ibnet.com.br
e www.harrywiese.pro.br
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