Morte pelo ridículo
"O ridículo mata
e mata sem sangue". Esta sábia constatação foi feita por um dos mais
profundos analistas da vida carioca do início do século XX, o escritor Afonso
Henrique de Lima Barreto. Sua vida foi das mais trágicas, mais sofridas, mais
dramáticas, tendo ele sido, inclusive, internado em um manicômio para curar-se
de alcoolismo. Observador arguto e dotado de grande capacidade de reproduzir em
texto comportamentos e modos de falar do povo, particularmente dos pobres, dos
boêmios, dos alcoólatras e dos pequenos burgueses, foi vítima de preconceito
por ser negro. Só muito tempo depois de morto (em 1922) ‚ que os críticos e a
intelectualidade brasileira reconheceram o seu valor, embora não tenham ainda
feito justiça ao seu talento e à sua importância para a cultura nacional.
Além de quatro
romances, dois dos quais clássicos da nossa literatura ("Recordações do
Escrivão Isaías Caminha", "Triste Fim de Policarpo Quaresma",
"Numa e a Ninfa" e "Vida e Morte de M. J. Gonzaga"), deixou
artigos e crônicas, reunidos nas coletâneas "Os Bruzundungas, Feiras e
Mafuás, Vida Urbana e Marginália". Lima Barreto, portanto, ao chegar à
conclusão de que o ridículo mata lenta, mas seguramente, qualquer reputação,
sabia do que estava falando. O alcoolismo levou-o a sentir na pele essa
situação. Muitos pseudo-intelectuais, no entanto, não sabem disso. Muitos
pavões enfatuados e vazios também não. Muitos valentões, que se julgam senhores
do mundo, idem. Muitos atores canastrões, ou cantores desafinados, ou
compositores de ocasião, ou poetastros, ou romancistas de água com açúcar, etc,
etc, etc, igualmente não percebem quando representam esse papel. São cegados
pela vaidade. Perderam a capacidade de enxergar o óbvio, o que todos vêem, o
que está claro e cristalino e que só eles não se dão conta. Estão mortos (sem
sangue) pelo ridículo, mas esqueceram de avisá-los.
Nada apavora mais quem
vive de escrever do que este perigo. Percebendo ou não, todos estamos sujeitos
a situações, digamos, vexatórias. Uma escolha inadequada de tema, uma abordagem
desastrada, piegas ou pueril de um assunto qualquer, uma ilusão acerca de uma
suposta qualidade que apenas o autor vislumbra e zás...! O infeliz resvala,
rodopia e vai ao chão. Leva um tombo, às vezes impossível de se recuperar. Pior
ridículo é quando quem está fazendo esse papel sequer percebe. Aí é trágico. O
infeliz é alvo de cochichos, de risadinhas, de anedotas e de chacotas, todos
pelas costas. E quando alguma alma piedosa o alerta, em vez de agradecer,
mostra-se ainda mais agressivo com quem lhe prestou esse favor. Sente-se
ofendido. Assume ares de quem teve a
dignidade ferida. Torna-se inimigo de quem o alertou. Os extremamente
vaidosos agem invariavelmente dessa maneira.
O escritor paulista do
século XVIII, Matias Aires Ramos da Silva (quase esquecido), afirma:
"Trazem os homens entre si uma contínua guerra de vaidade; e conhecendo
todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua: a vaidade é como um instrumento,
que tira dos nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos
em uma distância imensa, ao mesmo tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos
outros ainda mais perto, e maiores do que são". Não há caminho mais curto
e mais seguro para o ridículo do que este. Ou do que atacar publicamente, com
argumentos pueris (ou mesmo lógicos), quem tenha reputação solidamente firmada
mediante uma obra consensualmente admitida como de qualidade. É o que ocorre
com muitos críticos, acostumados apenas a jargões e lugares-comuns ao avaliar
um livro, uma peça, um filme, um quadro ou uma escultura e acham que sua função
é unicamente falar mal das produções alheias. Ou, o que é pior, quem se
desmancha em elogios ao que é ostensivamente ruim.
Quantas vezes não nos
sentimos mal, como se os atingidos estivéssemos sendo nós, ao testemunharmos
alguém representando um papel ridículo! Fazendo um discurso tolo, eivado de
referências incorretas ou inadequadas, por exemplo. Atuando em uma peça teatral
e esquecendo a fala, ou com dicção ruim, ou entrando em hora errada e fora do
contexto, ou tropeçando e caindo no palco etc. Aliás, todos os que se
apresentam em público correm estes riscos. Daí a necessidade de um contínuo
autopoliciamento. Daí ser preciso contar com grande dose de humildade para
nunca se achar o perfeito, o intocável, o superior aos outros. Daí ser
indispensável rigorosa e permanente autocrítica, para corrigir os defeitos. E
mesmo com tudo isso, nunca se está a salvo dessa "morte súbita",
quase sempre sutil e indolor, causada pelo ridículo.
Boa leitura!
O Editor.
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Seria bom que, quando fôssemos enveredar para o caminho do ridículo, desconfiássemos e mudássemos de rota.
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