Feliciano
e o estupro da índia Maria Caetana
* Por
José Ribamar Bessa Freire
A índia Maria Caetana,
se viva estivesse, certamente reforçaria o coro de vaias ao discurso machista
do deputado Marco Feliciano (PSC/SP vixe, vixe) nesta quinta-feira (9), na
Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, que afirmou não existir no
Brasil a cultura do estupro, insinuando que só é currada quem não se dá ao
respeito e que os recentes estupros coletivos das meninas de 14 e de 16 anos,
no Piauí e no Rio, foram episódicos e datados. Mas a história desmente o
pastor-deputado. Os gritos desesperados de Maria Caetana, no séc. XIX, chegam
até nós através dos registros policiais.
Na madrugada do dia 17
de janeiro de 1818, no meio de "muitas desordens, pancadas e ferimentos
por bandos de facinorosos que se espalharam pelas ruas da cidade", vários
homens, identificando-se como agentes policiais, invadiram a casa da dona Maria
Theresa, na Rua do Sabão, centro do Rio, atual pista lateral da Av. Presidente
Vargas. Ali mesmo “cometterão o attentado escandaloso de uzarem todos da índia
Maria Caetana que a senhora tem em sua casa” conforme ofício ao Juiz do Crime
do Bairro da Sé. Não consta a idade da índia estuprada, que era empregada
doméstica.
Quem são os
estupradores? O documento traz os nomes de alguns dos "feraciosos",
entre os quais várias autoridades militares. Dois deles eram da Cavalaria do
Exército - o soldado Felício de tal e o furriel Fulano Dias, cuja patente era
superior a de cabo. Havia ainda outros: Zeferino de tal "paizano morador
da Rua do Sabão", Caetano Coelho "que dizem se mudou da Rua do Sabão
para a do Senhor dos Passos", Paulino e seu irmão, além de um guarda da
Alfândega e de "outros muitos que não foram identificados".
Abuso e impunidade
Algum estuprador foi
condenado? Em verdade vos digo, é mais fácil ver um rico preso, um camelo no
reino dos céus ou o japonês da Polícia Federal passar pelo fundo da agulha do
que ver um estuprador encarcerado. A impunidade faz parte da cultura do estupro
da mesma forma que o discurso do deputado-pastor. No ofício citado, o ajudante
intendente geral da polícia, Estevão Ribeiro de Rezende, pede a abertura de
investigações sobre os distúrbios, mas nas páginas seguintes dos Registros de
Ordens e Ofícios expedidos pela Polícia não há dados da prisão dos
estupradores.
O documento com o
registro do estupro foi publicado em parte no livro "Aldeamentos Indígenas
do Rio de Janeiro" e detalhado na recente tese de doutorado de Ana Paula
da Silva "O Rio de Janeiro continua índio: território do protagonismo e da
diplomacia indígena no século XIX", defendida no Programa de Pós-Graduação
em Memória Social da UNIRIO. Ela passou um pente fino nos livros de presos do
Fundo Polícia da Corte do Arquivo Nacional, mas não encontrou registro de
prisão dos estupradores.
- Não se sabe o
desenrolar desse caso. Em vão, procurei nas páginas seguintes dos Registros de
Ordens e Ofícios expedidos pela Polícia, mas não encontrei informações a
respeito de Maria Caetana e do grupo de ‘facinorosos’ - escreveu Ana Paula.
Índias e índios,
muitos deles menores de idade, eram remetidos nessa época de outras províncias
do Brasil para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalharem no serviço
doméstico nas casas de pessoas abastadas. Um Aviso Ministerial de 09 de agosto
de 1845 constata que “em algumas províncias tem havido indivíduos que, abusando
da simplicidade dos Índios, lhes comprão os filhos, e não só os conservão em
perfeita escravidão, dando-lhes rigoroso trato, mas também os remettem,
vendidos, para esta Côrte, ou de umas províncias para outras”.
Índias domésticas
O número de índias
domésticas nas casas do Rio era tão expressivo que mereceu intervenções da
Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e do juiz de órfãos da Corte. O
governo imperial constatou que “muitos indígenas existem ao serviço de pessoas
particulares sem que percebão salário ou estipendio algum, achando-se assim
reduzidos ao estado de quasi perfeito captiveiro”. Exigiu contrato escrito de
locação de serviços com cópia enviada ao desembargador chefe de Polícia, mas a
lei parece nunca ter sido cumprida.
O estupro sistemático
de índias domésticas não foi nada episódico, mas uma constante na história
colonial de toda a América. A leitura do documento que narra o estupro de Maria
Caetana levou Ana Paula da Silva a sinalizar a incômoda sensação de estar em
1492, diante do relato de Michele de Cuneo. Em sua segunda viagem ao continente
americano, na região do Caribe, este fidalgo, que ganhou uma índia como
presente de Cristovão Colombo, relata mais um episódio de violência contra as
mulheres, por ele protagonizado:
“Quando estava na
barca, capturei uma mulher caribe belíssima, que me foi dada pelo dito senhor
Almirante e com quem, tendo-a trazido à cabina, e estando ela nua, como é
costume deles, concebi o desejo em execução, mas ela não quis, e tratou-me com
suas unhas de tal modo que eu teria preferido nunca ter começado. Porém, vendo
isto (para contar-te tudo, até o fim), peguei uma corda e amarrei-a bem, o que
a fez lançar gritos inauditos, tu não terias acreditado em teus ouvidos.
Finalmente, chegamos a um tal acordo que posso dizer-te que ela parecia ter
sido educada numa escola de prostitutas”.
O relato nojento de
Michele de Cuneo transcrito por Tzvetan Todorov no seu livro A conquista da
América – a questão do outro, comprova o lugar e o tratamento dado às mulheres
indígenas pelo colonizador, evidenciando as múltiplas violências que elas
sofreram por sua condição. “Ser índio, e ainda por cima mulher, significa ser
posto, automaticamente, no mesmo nível do gado”. No caso da Índia Caribe e de
Maria Caetana, no mesmo plano das prostitutas que sempre receberam tratamento
discriminatório e desrespeitoso.
"Histórias como
essas - escreve Ana Paula - não foram, e não são, episódios isolados de
humilhações e violências praticadas contra as mulheres indígenas, em extensão a
todos os povos originários das Américas, no período colonial e
pós-colonial". Ela conclui o relato do episódio com a frase citada por
Eduardo Galeano, no "Livro dos Abraços", evidenciando a perspectiva
dos índios:
- “Vocês vivem uma
ditadura há quinze anos. Nós, há cinco séculos”.
P.S. 1) Freire, José
R.Bessa & Malheiros, Márcia. "Os Aldeamentos Indígenas do Rio de
Janeiro. Eduerj. Rio. 2010
2) Silva, Ana Paula. O
Rio de Janeiro continua índio: território do protagonismo e da diplomacia
indígena no século XIX". 2016. Tese de doutorado em Memória Social. PPGMS,
UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Banca: Freire,
J.R.B. (orientador); Geiger, Amir; Levy, Sofia D. ; Missagia, Isabel;
Albuquerque, Marcos.
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Jornalista, professor e historiador.
Jair Bolsonaro disse não estuprar Maria do Rosário porque ela não merecia. Nós não merecemos políticos como Bolsonaro e Feliciano, e nem a cultura do estupro. Dizeres como este são a semente de tal cultura, ao lado da impunidade.
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