Quando morre uma língua
* Por
José Ribamar Bessa Freire
-
É justo perguntar: não é, realmente, de uma estupidez revoltante o sistema que
seguimos de obrigar esses pobres homens a falar o português, sem o auxílio de
um intérprete? Não é muito mais razoável que primeiro a aprendêssemos nós, para
depois, e com vagar, ensinarmos a eles a nossa língua? (Couto de Magalhães: Viagem
ao rio Araguaia, 1863)
Couto de Magalhães,
poucos anos antes de ser presidente da província de Mato Grosso, no séc. XIX,
previu profeticamente a estupidez que seria cometida um século e meio depois
por três deputados de Mato Grosso do Sul, mostrando que o sistema não mudou. Os
três ignorantes que não falam terena - Paulo Correa (PR vixe), Rinaldo Oliveira
(PSDB, vixe) e Mara Caseiro (PTdoB, vixe vixe) - impediram que o líder indígena
Paulino, convocado a depor na CPI do genocídio, relatasse em sua língua materna
os ataques que a comunidade vem sofrendo desde 2013. Ako kemiiku emo'u xane
peke'exake.
- Se ele tá no Brasil,
nós precisamos ouvi-lo em português - berrava a odontóloga Mara Caseiro. - É
nos chamar de palhaços ter que transcorrer toda a nossa CPI com depoimento em
terena! Eu não entendo terena! O senhor entende, deputado Correa? O senhor
entende, deputado Rinaldo?"
Não, eles não
entendem, não leram Couto de Magalhães e o mais trágico é que nunca vão ler. Os
três palhaços - sem querer ofender os clowns - dizem que entendem "thank
you", mas não "ainapo yakoe" em terena, língua aruak falada hoje
no Brasil por 15 mil pessoas, mas que era amplamente usada antes de os
portugueses aqui chegarem trazendo uma língua que é agora nacional. Até aí tudo
bem, milhões de brasileiros vivem na mesma situação. A estupidez, porém,
ocorreu quando os deputados rejeitaram a presença da professora Maria de
Lourdes Elias para servir de intérprete e exigiram que o depoente falasse em
português. Diante da impossibilidade, o depoimento foi suspenso, com registro
de Boletim de Ocorrência e recomendação de encaminhar Paulino ao juizado
especial criminal.
Glotocídio
Vítima de várias
tentativas de homicídio e, agora, ferido no seu direito de se expressar na
língua materna, Paulino ainda por cima foi criminalizado por não falar
português. Para transformá-lo em réu, os parlamentares exibiram vídeo em que o
líder terena usa o português, que é sua segunda língua, mas na qual não se
sente tão à vontade, porque pensa em terena. Seria o mesmo que pedir aos nobres
deputados que, na defesa do agrobusiness, discursassem em inglês. "I don´t
bélive, bichinho. You must study ". Os Terena diriam a eles: - Kenokoa
ihikexiivo.
- "Não permitir o
depoimento em língua terena sob o argumento de que ele entende o português
configura ação de vergonha e extrema ignorância" - argumentou o advogado
terena Luiz Henrique Eloy, doutorando em antropologia no Museu Nacional (UFRJ),
que tem 25 anos, a mesma idade e lucidez de Couto de Magalhães quando publicou
seu livro sobre o Araguaia. Para ele, os deputados cometem um
"constrangimento ilegal", contrariando o artigo 231 da Constituição
Federal e o artigo 12 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, assinada pelo Brasil, que asseguram o
uso do idioma materno nos procedimentos judiciais. A legislação até que mudou,
mas a ignorância e a estupidez de certos agentes públicos continuam as mesmas.
Situação similar
ocorreu durante o júri dos acusados de assassinar o cacique guarani Marco
Veron, morto em Juti (MS), em 2003. A juíza federal Paula Mantovani Avelino se
recusou a ouvir a testemunha por meio de um intérprete, acatando o pedido da
defesa dos réus para impedir que os índios se expressassem em guarani. O Ministério
Público Federal abandonou o plenário por entender que a medida contrariava a
Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Francamente, o que a justiça e a lei perdem se a testemunha fala uma língua
indigena e seu depoimento é traduzido por um intérprete? Não é muita
mesquinharia impedir que alguém se expresse na língua em que foi acalentado
pela mãe?
Na época de Couto de
Magalhães ainda eram faladas no Brasil a metade das 1.300 línguas encontradas
pelo colonizador no séc. XVI. De lá para cá, em um século e meio, a
"estupidez revoltante" reduziu essas línguas a 188 segundo os
linguistas ou a 274 segundo Censo do IBGE de 2010. De qualquer forma, está
caracterizada a crueldade do glotocídio que, com a morte das línguas, pretende
exterminar os índios.
Línguas moribundas
A importância de
elaborar políticas para que essas línguas continuem vivas foi percebida por
Couto de Magalhães, ao reconhecer que "Cada nova língua que se estuda é
mais importante para o progresso da humanidade do que a descoberta de um gênero
novo de minerais ou de plantas. Cada língua que se extingue (...) é uma
importante página da história da humanidade que se apaga e que depois não
poderá mais ser restaurada".
Esse parece ser também
o entendimento do historiador mexicano Miguel León Portilla, com seu poema em
língua náhuatl "Ihcuac tlahtolli ye miqui" (“Cuando Muere una
Lengua”) que traduzo aqui do espanhol para os leitores do Diário do Amazonas.
QUANDO MORRE UMA
LÍNGUA
Quando
morre uma língua,
não
se refletem mais
neste
espelho
as
coisas divinas:
estrelas,
sol, lua.
Nem
as coisas humanas:
pensar
e sentir.
Quando
morre uma língua
tudo
o que existe no mundo,
mares
e rios,
animais
e plantas
não
são mais pensados, nem ditos
com
sinais e sons
que
deixaram de existir.
Quando
morre uma língua
se
fecha, então,
a
todos os povos do mundo
uma
janela, uma porta,
o
desabrochar diferente
de
tudo aquilo
que
é ser e vida na terra.
Quando
morre uma língua,
ninguém,
seja lá quem for,
jamais
conseguirá repetir
suas
palavras de amor,
suas
entoações de dor e querência,
ou
- quem sabe? - seus velhos cantos,
suas
histórias, discursos, preces.
Quando
morre uma língua,
significa
que outras antes já morreram,
e
muitas ainda podem morrer.
Espelhos
quebrados para sempre,
sombra
de vozes
silenciadas
para sempre:
a
humanidade se empobrece.
Sobre o tema, ver
também:
1) PARA NÃO FALAR COM
O ESPELHO - http://www.taquiprati.com.br/cronica/876-para-nao-falar-com-o-espelho
2) MORTE E VIDA DAS
LÍNGUAS - http://www.taquiprati.com.br/cronica/26-morte-e-vida-das-linguas
3) O HOMEM QUE FALAVA
COM O ESPELHO – http://www.taquiprati.com.br/cronica/21-tikuein-entxeiwi-o-homem-que-falava-com-o-espelho-seguido-de-version-en-espa%C3%91ol
4) SE EU FOSSE OS
ÍNDIOS, AS LINGUAS - http://www.taquiprati.com.br/cronica/19-se-eu-fosse-os-indios-as-linguas-seguido-de-version-en-espa%C3%91ol
*
Jornalista, professor e historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário