O boneco íntimo
* Por
Paulo Fernando Craveiro
Recebi a vida pronta.
Então apalpei minhas mãos, meus ossos, minhas veias, tentando me reconhecer,
aflito. Anoitecia, agora me lembro, sem me lembrar, e olhei o círculo
branco-gelo da lua por uma fresta de janela. Depois fechei os olhos para ver
melhor.
Vi o silêncio por
dentro. Ele era pálido e cantava. Em seguida descobri a espera e o cansaço.
Mais adiante vi rebanhos de estrelas azuis mudando de cor. Melhor é não haver
nascido, pensei, porque tenho uma fatigante narrativa pela frente, mas acontece
que a vida chegou inevitável.
Quando a janela
escancarou, por acaso, o vento açoitou meus cabelos pretos, relembrei coisas e
comecei a esquecê-las, lentamente. Agora me lembro de tudo e nada. Não sei das
cores, não sei dos nomes das cores do mundo, mas saberei de tudo, no futuro, ou
de quase tudo, mesmo que não queira saber.
Jogado no chão, um
relógio de algibeira marcava a hora que não era bem aquela. Estou numa sala,
comigo mesmo, o pano do teatro subindo, e me vejo andando de um lado para o
outro no palco, a cabeça a rodar, nenhum texto na mão. À medida que os minutos
passam, passam horas, o tempo passa de um dia para o outro.
Não sei se sou muito
velho ou moço demais, bonito ou feio, se estou comprovadamente vivo ou morto,
se sou gente ou boneco, ambos ou nenhum dos dois. Tenho a boca suculenta,
lustrosa, e sou molengo demais. Minhas pernas não funcionam. Por isso quero
ficar somente até onde meus olhos forem.
Acho que já estive
aqui porque algo se movimenta como antes, mas não posso dizer em que época nem
de que maneira cheguei. Abro meu coração e digo: meu coração. Somente isso.
Suponho que bate em mim um coração, bêbado de sangue, como nos velhos tempos.
Minha voz é
emprestada. Apareceu quando mexi pela primeira vez a boca. Entretanto é menos
do que uma voz. Quando muito, equivale a um silêncio que se estraga nos lábios.
Gargarejei ah ah. Ahs soltos no ar, antes de baixar sobre a boca. Eram ahs e
outros ahs que se levantavam da fundura da laringe, movimentando-me o queixo.
Emudeci.
Depois os ahs voltaram
e pensei, animado, afinal, uma ilusão sonora de renascimento. Renascimento? Mas
nunca morri. Nunca. De que maneira se renasce sem que se tenha morrido, rosnei,
sem haver passado por uma coisa convulsa e encantada como a morte?
Eu nunca havia nascido
como se nasce, nem morrido como se morre. Eu nunca havia participado de coisas
simples como cantar comer dançar suar andar rebolar cair tramar urinar sonhar.
Eu nunca havia tirado a roupa nem a tampa de uma caneta esferográfica. Eu nunca
tinha mamado num peito úmido e vasto. Nunca.
Minha mãe com o peito
amassando minha cara e minha respiração. Peito ininterrupto, redondo, de
abóbada. O bico do peito pincelando-me o nariz, minha boca derrapando nele, eu
recém-nascido e sujando a fralda.
Percebi que a ausência
da minha mãe estava colada no meu corpo, mãe invisível e descorada que não
tinha peso nem olhar, porque o vento apagava seu rastro. Nunca vi minha mãe.
Nunca vi minha mãe nem mais gorda nem mais magra. Eu queria dizer mãe, mamãe,
minha mãe, e somente saia da boca o ah ou um bafo de pera.
Logo revejo, ao meu
lado, cara vulgar, o homem que me inventou. Lucian Eliade está se esforçando
para que eu fale, ele criador, eu criatura. Digo, entretanto, sem falsa
modéstia, que se nossos papéis tivessem sido invertidos, conforme o desejo do
destino, eu, criador, o teria concebido, criatura, mais atraente do que ele me
concebeu, no mínimo semelhante a alguém nascido num país perto dele, o
ex-primeiro-ministro ucraniano Viktor Yushshenko, antes de acusar os russos de
envenená-lo, o rosto todo pipocado.
Lucian Eliade queria
que eu falasse. Ninguém deveria notar que era ele, e não eu, quem estava
falando. Acomodava-me como uma criança de colo, ensinando-me a falar ah, muitos
ahs. Eu falava como falo sem reparar como falava e continuo falando, se isso é
falar. Falo com pedras na boca. Como, engulo palavras e cuspo. Depois,
bonzinho, recolho as cascas das pedras.
Falo por uma boca a um
palmo da minha, que ligeiro se transforma em duas para efeito vocal, a boca
afastada e a minha, tão próximas, de repente. Falo sons curtos, divisíveis, mas
não é a mesma coisa como se divide um pão. O pão pode ser repartido. A voz,
não, porque de fato pertence, indivisível, a outra pessoa. No início, estou
meio sem jeito. Entre a insegurança e a surpresa, teria me escondido debaixo de
lençóis, se lençóis existissem, ocultando-me da luz que ilumina o ambiente.
Entretanto falta-me autonomia. Nasço infeliz, mas provando o gosto da fala.
*
Escritor.
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