O sonho
* Por
José Calvino de Andrade Lima
Luiz Carlos ao
regressar do trem da tarde, durante o percurso de Recife à sua cidade natal,
sentado num dos bancos de encosto-móvel-de-vime, observava pela janela o velho
gasômetro, o parque do Exército e a favela do Coque. Assistia o telegrafista da
estação de “Fernandinho” entregar, no arco, a licença concedida de um trem de
carga, que cruzava com o do Cabo, destino à estação de Cinco Pontas.
O guarda-freios
equilibrava-se no passeio por sobre os vagões, como um verdadeiro malabarista.
Lembrava-se de que, na maioria das vezes, dava as licenças ao maquinista e ao
chefe do trem, sem ser preciso o uso do arco. Era uma prática invejável! E
mesmo já não se dava ao trabalho do servente ter que ir buscar os arcos, quando
jogados pelos recebedores da licença, além do que muitos meninos escondiam os
arcos pelo simples prazer de se divertirem, principalmente por se tratar da
estação de Fernandinho (Koch), o triângulo da Rede Ferroviária, entroncamento
ferroviário, para passagem de todos os tipos de trem, obrigatoriamente, com
destino a Recife. O movimento era superior ao de qualquer outro da ferrovia,
mas seus funcionários eram em número inferior, em função da economia do
material humano. A “Maria Fumaça” arrotava faíscas de sua fornalha, caindo nos
olhos dos que se atrevessem a por a cabeça do lado de fora, geralmente as
crianças. A loco apitava sucessivamente ao passar antes dos cruzamentos de
automóveis, soltando fumaça em desenhos, através de sua chaminé, deixando pela
linha afora um cheiro saudoso do carvão-de-pedra. Desfilavam os postes com os
seus fios telegráficos e as placas em vermelho, com letras brancas, advertindo:
P.N. APITE PARE OLHE-ESCUTE.
Chovia! Luiz desce o
vidro de sua janela de guilhotina, quando repentinamente, uma brita e cascalhos
atingem o vidro, quebrando-o, quase acertando em sua cabeça. Era a meninada
faminta do Coque, que tinha como única distração ver os trens passarem. Um de
seus dois conterrâneos disse-lhe:
- Cuidado, Luiz, aqui
a gente tem que passar com o lado da veneziana fechada, chova ou que faça sol,
a educação do povo daqui é diferente da do povo do interior, pois no interior
os meninos e os adultos apenas nos dão adeus.
Luiz ouvia, via e
calava. Aquilo era uma realidade. Pensava em seu tempo de criança, talvez se
houvesse nascido naquele ambiente fosse como aqueles pobres miseráveis
comedores de siris.
Um de seus colegas, a
fim de fazer hora durante a viagem, contava anedotas como Chico Anísio. Uma
delas até que fez com que Luiz sorrisse a valer, sobre um matuto que foi a um
programa de calouro na Rádio...(Historietas do livro “Miscelânea Recife”, ed.
2001).
O trem já passava da
estação de Lacerda. Luiz dormia. Inicialmente, sonhou sendo preso como
comunista, por ter participado de um comício de Prestes, conhecido como “O
Cavaleiro da Esperança”. Este sonho era como um aviso profético, que
futuramente haveria de se realizar. O local esquisito era como o “Buque” da
Chefatura de Polícia. Ora parecia com um quartel da Meganha, onde fora humilhado,
colocado na solitária. Aquele sonho parecia real! No isolamento via elementos,
da própria polícia, presos sendo maltratados e marginalizados pelos próprios
companheiros. Ouvia dizerem aos policiais-presos:
- Vão ser excluídos e
entregues à Polícia Civil, transferidos para a Casa de Detenção junto com esse
civil safado!
A promiscuidade com os
presos de diferentes classes era ridícula. À proporção em que sonhava já se
sentia na Casa de Detenção do Recife com seu companheiro José, taxado como pivô
das greves e passeatas dos ferroviários, preso como comunista por contrariar as
leis, cadavérico, ficando imóvel e tremendo como uma “toyota em ponto morto”.
Os meganhas, com as baionetas armadas, afligia-se:
- Meu Deus! Onde fui
me meter.
- Isto é uma loucura,
eles só sabem fazer leis e não dão os nossos direitos. Me matem!
As baionetas caladas
apontavam em sua direção, como num pacto da morte, numa cena torturante. Os
presos comentavam:
- O doutor morreu?
- Não quero saber da
vida de seu ninguém, quanto mais de morte. Todo mundo depois que morre é bom.
Quem quiser gostar de mim, que goste enquanto estou vivo.
Houve cheia e o
Presídio parecia uma Arca de Noé. Os presos gritavam:
- Abram aqui!
- É o fim do mundo! –
Um dos guardas gritou:
- Félas das putas! Vão
na onda do capelão do catorze pra botar a Bandeira Nacional na linha do trem!
Morram, pestes!
Em seu segundo sonho,
o trem entrava em um túnel subterrâneo e não mais saía, mergulhando na lama do
Coque. Depois, avistava as pessoas entrarem e saírem de um buraco, pelo chão adentro.
- Será que, no futuro,
será assim nas metrópoles?
Ora o trem mergulhava
num túnel totalmente escuro (Intervalo). Já se encontrava em plena liberdade
num trem, sem nuvem de fumaça, nos corredores com pistas altas e baixas: uma
para o trem e bonde, outras para ônibus e carros (Intervalo). Em segundo plano
via-se, beirando, rios e o mar de Olinda.
- Luiz! – era o
condutor apontando – olha a estação!
Acordou-se, descendo
do trem em movimento. Aproveitando o comboio que passava lentamente, saltou do
estribo bem próximo ao banco de madeira da plataforma da estação. Lá,
encontravam-se alguns religiosos discutindo sobre religião. Luiz Carlos, como
leigo no assunto, mas muito curioso, analisava aquela conversa, que sempre
terminava em aborrecimentos. Pesava mais ainda para o velho Jeová-barbeiro, seu
padrinho. Sua derrota, e tantas perseguições que sofrera, eram devidas às
profanações que fizera, sempre com o seu panamá na cabeça e os dedos polegares
às alças do suspensório. Quando falava na pessoa do Senhor Jesus Cristo, como
um homem inteligente, que aplicava muito bem as palavras de amor e bondade,
julgando-o como um ser humano igual aos outros, nascido de relação entre um
homem e uma mulher, era um “Deus nos acuda”.
Pensava Luiz, consigo
mesmo: “Não é que o meu padrinho tem muita sabedoria?” Mas, na verdade Luiz
tinha mesmo era medo de sofrer como o padrinho, que já fora um grande barbeiro
e aprendera no Rio de Janeiro a cortar todo o tipo de cabelo: de Jack Dempsey
(chamado popularmente pela corruptela de Jaqui Demes) a Cornel Wilde. No
Recife, instalou uma barbearia ambulante no Mercado São José. Ali, todos lhe
davam a preferência, por ser competente na arte de cortar. Os fregueses mais
exigentes preferiam Cornel Wilde ou Dick Farney. Para as prostitutas, penteava
com pastinhas na testa (pega rapaz) sobre o corte “a la homem”, como se fosse
um cabeleireiro e, com a pose de quem estivesse num grande salão de beleza,
penteava as grandes damas do “Café Society”. Sem condições de abrir um salão na
capital, resolveu voltar para a sua cidade natal, sendo lá os cortes
referenciados uma grande novidade. Até mesmo as mulheres do Chefe da Estação e
do Delegado de polícia aderiram à nova moda, deixando de lado suas tranças e
cocós, ficando no toilette embelezadas com o seu “a la homem”. Apenas a índia
Luzinete permanecia em sua simplicidade, com seus cabelos longos; e, na
lembrança de Luiz, apenas ficava a imagem que seus lindos cabelos reproduziam
ao esvoaçarem-se ao som do vento, quando da estação a via correr. O velho Jeová
agora vivia dos ganhos da lavagem de roupa de dona Zefinha, sua esposa e
madrinha de Luiz e da esmola dos ferroviários. Luiz ajudava-o, por vezes, com
os trabalhadores nas linhas ferroviárias (chamados popularmente de casacos de
linha), na hora do almoço, achando que todas as profissões brasileiras deveriam
ter seus direitos igualmente respeitados, o que não acontecia com algumas,
quando via alguns manobreiros, guarda-freios... com alguns de seus membros
mutilados, mas sem terem sido cobertos pela lei que os deveria amparar, ou
mesmo com um de seus sentidos totalmente inutilizados, passando sobre os olhos
de todos, permanecendo em suas ocupações, totalmente entregues àquela situação,
julgados ainda "aptos" ao serviço.
Seu padrinho, para Luiz,
só falava coisas interessantes, mas que prejudicavam a ele mesmo. Enfim, seu
prejuízo fora tão grande que falecera em um banco de estação, envolvido com seu
capote baeta. Dormira e não mais acordara.
*Extraído (em resumo)
do livro “O ferroviário – Cap. IV, pp. 39-43. Ed. 1980.
*Escritor,
poeta e teatrólogo pernambucano.Vejam e sigam Fiteiro Cultural: Um blog cheio
de observações e reminiscências – http://josecalvino.blogspot.com/
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