Ficção fundamentada na mais estrita
realidade
“Os mistérios de Marselha” é considerado, por boa parte da
crítica especializada, como um “livro menor” na monumental obra de Emile Zola.
Entendo que é preciso muito cuidado nesse tipo de avaliação. Se a comparação
for feita com tudo o que o escritor produziu na sequência, isso faz até certo
sentido. Neste caso, estaremos comparando ele com ele mesmo. Porém se compararmos
esse livro com obras similares de outros autores, essa classificação é não
somente injusta, como denota falta de critério de quem o compara. Li o romance
(na edição espanhola, pois não encontrei em lugar algum uma edição em
português, que desconfio que nem haja) e fiquei empolgado com ele. Portanto, em
qualidade literária, ele não fica nada a dever a nenhum outro.
“Os mistérios de Marselha” foi publicado em 1867, quando
Zola tinha 27 anos de idade. Não foi seu primeiro livro. Foi o quinto. Antes
dele, o escritor já havia publicado: “Contes à Ninon” (1864), “La confession de
Claude” (1865), “Madeleine Férat” (1868) e “Le vœu d'une morte” (1866). Nessa
obra, ignorada por tantos que criticam o que sequer conhecem, observe-se, já
aparecem todas as virtudes, todas as características que viriam a pautar a
carreira literária do “pai do Naturalismo”, sobretudo seu rigor histórico,
embora escrevendo ficção. A História se faz presente no citado romance (que
muita gente classifica como novela) em duas ocasiões. A primeira é quando Zola
se refere à Revolução de 1848. A segunda, ao tratar especificamente da epidemia
do cólera que assolou Marselha no ano seguinte, 1849.
Impressiona, reitero, o rigor histórico do escritor, já que
ele não testemunhou nenhum dos dois eventos (e nem poderia). Quando da
ocorrência do primeiro, por exemplo, Zola tinha apenas oito anos de idade
(nasceu em 2 de abril de 1840) e quando aconteceu o segundo, óbvio, tinha um
ano a mais. Ademais, não morava em Marselha, mas em Paris. Teve, pois, o
cuidado de pesquisar meticulosamente, para que nenhum dado fosse diferente do
que realmente aconteceu. Essa se tornou, aliás, característica marcante de seu
tão apreciado estilo. O escritor trata da epidemia apenas nos capítulos finais
do livro. Ressalta, sobretudo, o comportamento da população marselhesa diante
do flagelo. Descreve uma cidade praticamente abandonada por seus habitantes,
fugindo dos focos da enfermidade visando se livrar do contágio. Traça, porém, a
diferença dessas “fugas”, de acordo com as respectivas classes sociais.
Zola enfatiza que os pobres iam para os campos, onde
permaneciam em abrigos improvisados, precários e insalubres ou nem isso, pois
que na maioria dos casos tinham por teto somente “as estrelas”. Já os ricos
seguiam para luxuosas mansões de veraneio, onde não faltava nada e onde
chegavam até a esquecer que Marselha enfrentava devastadora epidemia. Na
cidade, propriamente dita, só ficavam os doentes e algumas almas caridosas
(poucas) que se encarregavam de tratá-los na tentativa de salvar suas vidas ou
para que os moribundos não tivessem mortes mais sofridas do que já teriam,
relegados ao abandono. Estavam, nesses casos, muitos médicos (cujo heroísmo
Zola destaca) e alguns funcionários públicos, fieis à missão de servir, fossem
quais fossem as circunstâncias. Esses aspectos são os que mais me chamaram a
atenção nesse livro que merecia muito mais destaque do que o que teve.
Transcrevo este pequeno trecho (com minha tradução que,
admito, é um tanto canhestra), que resume o comentário acima. Zola escreve: “(...)
Pouco a pouco, Marselha se tornou vazia e desolada. Só ficaram pessoas de valor
que combatiam e desprezavam a epidemia. Ficaram elas e os pobres diabos,
obrigados a permanecer em seus postos, apesar dos seus temores. Se houve atos
de covardia, fugas bruscas de médicos e de funcionários, também houve atos de
energia e de dedicação. Desde o princípio, organizações de socorro haviam sido instaladas
nos bairros mais afetados e ali homens se dedicavam, dia e noite, em aliviar o
sofrimento da população convulsa, morta de medo, que não tinha como fugir da
cidade e muito menos para onde ir (...)”.
Ressalta, sobretudo, em “Os mistérios de Marselha” a
verossimilhança dos relatos, que batem, rigorosamente, com os registros
históricos feitos por historiadores. Afinal, não se pode perder de vista o fato
de que o livro é uma obra de ficção, na qual o autor poderia criar o que e como
bem quisesse. O fulcro do enredo é uma bela história de amor que, no fim da
narrativa, descobrimos que, a despeito do empenho dos personagens, se mostrou “impossível”
de ter um final feliz. Mas não farei uma sinopse, uma resenha que seja desse
empolgante romance (ou novela, como queiram), pois este não é meu objetivo.
Ademais, se o livro vier a ser lançado no Brasil (o que espero que aconteça)
não quero ser estraga prazeres e arruinar a surpresa do seu desfecho. Pelo
exposto, portanto, contesto a classificação que alguns críticos dão a essa
excelente narrativa como sendo “obra menor” de Emile Zola. Quem duvidar do que
afirmo, que leia “Os mistérios de Marselha” e tire as próprias conclusões.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Eu ainda terei de crescer muito até conseguir ler um livro do meio do século XIX no original espanhol.Assim, suas informações são primordiais.
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