A cidade e os passarinhos
* Por Pablo Uchoa
Na
ponta de um galho, no alto de uma árvore, numa rua sem graça de um bairro sem
graça, todos os dias vem pousar um casal de passarinhos. Um amigo me conta a
novidade durante o almoço, e eu decido ver com meus próprios olhos.
– Tenho médico, volto em uma hora – desenrolo, no trabalho.
No horário previsto lá estou, postado num banco cinzento sob calor sufocante.
Os pombinhos, que não são pombos mas talvez rolinhas (sei nada sobre
passarinhos), chegam no horário estipulado e pousam lado a lado. Beijam-se,
fazem carinhos com os bicos. Depois, penduram-se na ponta do galho, viram de
cabeça para baixo, tornam a se beijar, feito morcegos. Repetem o ritual.
Observo aquele balé que não dura sequer quinze minutos, até que se esvoaçam os
pombinhos ou rolinhas, sobra apenas o bafo quente, cinzento, carrancudo, deste
bairro sem graça mergulhado num dia de calor insuportável.
A cidade é um inferno para os passarinhos. Mas eles estão voltando, dizem os
cientistas, pois os prédios substituem as várzeas do interior, e o dióxido de
carbono acinzenta os céus onde um dia era prado.
Guardo-lhes pena, mas pelo menos alegram um pouco a vida de um infeliz como eu,
viciado na cidade e suas incoerências. Perdido entre a multidão, carregando a
pasta de sonhos debaixo do braço, meu vício já me custou um grande amor.
"Para mim bastaria observar passarinhos ao teu lado por toda a vida",
eu disse a uma mulher, mas ela não se convenceu, "te conheço há anos,
observar passarinhos te seria muito passivo" (e ela estava certa). Tomou a
direção da roça, deixou-me sozinho com meus feijões e meu vício, minhas
idiossincrasias, enfim, a cidade.
Nela, quando posso, observo passarinhos. Às vezes almoço sob a sombra das
árvores em uma dessas praças de bairro, onde de manhã os cachorros levam seus
donos para passear, tiro da sacola um sanduíche e fico ali, passarolhando. Na
primeira vez que apareci, despertei olhares suspeitos do vigilante privado, que
agora se acostumou e até sorri quando me avista, de dentro de sua guarita:
– Ê, piquenique!
Volto ao trabalho como um passarinho que deixou a gaiola por alguns instantes e
experimentou a liberdade, ou como quem vem de um mergulho no mar, "você
foi à praia esse fim de semana?", os colegas me perguntam. E eu sorrio e
encurto a conversa, mar e passarinhos, me lembra um jardim arborizado perdido
em algum lugar da minha infância, talvez no bairro de Laranjeiras.
Que maravilha aqueles meus sete anos, quando minha mãe me levou para conhecer o
Rio de Janeiro, e eu descobri a casa onde nasci e o Jardim Botânico, o cheiro
fresco da manhã entre as árvores. Ainda ouço Tom Jobim a sussurrar:
"Passarim
me conta, me diz
por que não fui
feliz?
Cadê meu amor
Que o vento
levou?".
Quando
nos mudamos para o Nordeste, eu ganhei uma baladeira, ou estilingue, e saía a
caçar anum e rolinha no matagal. Acabava invariavelmente praticando a mira nas
latas de Coca-Cola e cerveja jogadas no terreno baldio, nem calango eu tinha a
veia de acertar.
Anos mais tarde, meu pai me deu uma espingarda de chumbo, e meu primo toda
tarde vinha me visitar com uma bússola e material para fogueira. Lá entre os
cajueiros, ele, mestre no tiro à distância, sempre me deixava fazer a mira nos
bichinhos. Eu corria os olhos pelo cano da espingarda e levava a coronha ao
ombro, me concentrava mas nunca tinha jeito, sempre errava o tiro de propósito.
(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive
atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies
of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem
“Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no
prêmio Vladimir Herzog 2004.
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