São demais os perigos do passado
* Por
Marcelo Sguassábia
Desafinando o coro dos
saudosos, eu digo que nem tudo foi de se guardar em álbum de retratos. Nem
todos aqueles anos foram de coisas e gentes que justificassem lugar nos
quadrantes nobres da cachola, lá onde a nostalgia fermenta, entorpece o senso
prático e debilita a saúde do indivíduo.
A fila da vida anda.
Aquela história de que “bom mesmo era no meu tempo” é tudo chorumela de
maricas, nhém-nhém-nhém de quem não sabe enxergar o quanto ser astronauta é
melhor que ser troglodita.
Saudosismo faz sentido
se há do que sentir saudade. Mil vezes os racing games dos PS4 que os
insalubres carrinhos de tábuas de caixote, rolemãs e pregos cheios de tétano.
Esse negócio todo é muito romântico e bucólico até você imaginar o seu filho cercado
desses perigos. Sem o selo Abrinq. Sem o carimbo do Inmetro. Sem o aval da
vigilância sanitária e uma viatura do SAMU a postos em caso de emergência.
Me chegam pelo olfato
umas coisas que não são de agora, nem de Deus. Milho verde, mato depois da chuva,
flor de laranjeira. Se tudo isso fosse de Deus não vinha do mesmo lugar que a
esquistossomose, a Doença de Chagas, o amarelão, a maleita, a dengue e suas
variantes. Você pode achar divertido empinar papagaio até que o seu menino
enrosque a rabiola da pandorga num fio de alta tensão. Ou que chamem você às
pressas para reconhecer a cabeça dele no IML - decapitada por uma linha de
cerol sem dono conhecido.
Melhor, bem melhor é
tocar a vidinha seguro e trancafiado no condomínio. Aproveitar as tardes de sábado
besuntando álcool gel nas mãos, protegido por benditos e bem erguidos muros com
cerca elétrica. Da cidade pequena, lá de onde eu vim (não espalhe), quero
exorcizar suas esquinas tacanhas, suas conversas de comadre, aquele sol que
castiga o seu coreto inútil, o sol que descora a cal dos postes, que mata
cozidas as lagartas nos quintais e não dá trégua aos meninos que voltam
famintos da escola às suas casas com suspeitas de desidratação.
Aí você me vem com
“saudadinha” do velho que vendia raspadinha na praça, que bom que era, etc. Mas
aí eu lembro você da água de torneira que ele devia usar pra fazer a barra de
gelo e dos coliformes fecais que muito provavelmente infestavam aquele xarope
de groselha - de procedência ignorada e lotes não-rastreados. Meu Pai Amado,
que perigo. Que perigo.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
O que nos traz a imagem é ainda mais ameaçador do que os fatos. Qual tinta conterá esses "sucos" de fazer sorvete? Éramos tão puros, que nem imaginávamos que algum alimento pudesse nos fazer mal. Como eram desconhecidos, os riscos não existiam.
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