Dois amigos
* Por
Marco Albertim
Há amizades que se
interpenetram de tal modo que se fundem feito uma liga de metais. Mas mesmo
numa liga de aços, as moléculas se atritam. O que dizer de dois amigos que,
fundindo os sentimentos num só, absorvem-se nas substâncias e, por isso mesmo,
repelem-se de modo surdo? Ivam Marisco e Marconi Martinho conhecem-se há mais
de sessenta anos.
Também os pais de cada
um foram amigos, inda que tenham se separado em razão de um acidente trágico;
ruim para a memória dos filhos, mas carece dizer que a morte prematura do pai
de Ivam Marisco interrompeu a fundição da amizade, pôs fim à atração e à
repulsa no curso natural da vida de seus pais.
A maior provação Ivam
Marisco sentiu-a já adulto, ou na floração da maturidade relativa. Tinha 25
anos, foi preso, submetido a torturas e forçado a dizer onde o amigo se
escondera, depois de se ver perseguido pela polícia. Não o disse porque Marconi
Martinho, antes de sumir não confessara a ninguém sobre o paradeiro iminente.
Não sofreu choques elétricos, Ivam, mas sentaram-no na cadeira do dragão para
sentir com os pulsos presos, o queimor de repetidas bordoadas de palmatória na
palma das mãos. Com as palmas em brasa, ocorreu-lhe de dizer que o amigo fugira
para a Bahia.
Cinco anos depois,
Marconi Martinho reencontrou o amigo no modo como gostavam de fruir a amizade:
bebendo cerveja num bar na esquina da avenida Guararapes. Ali, nunca tinham
esbravejado contra os milicos do golpe, mas tinham viva no juízo a morte de
Jonas Albuquerque e Ivan Rocha Aguiar.
Ivam Marisco confessou
a Marconi Martinho, posto que não havia como evitar, que para confundir a
polícia dissera que o amigo fugira para a Bahia. Os dois se olharam nos olhos.
A amizade se fortaleceu conforme convinha ao juízo de cada um. Marconi Martinho
sobrevivera para contar como escapara do cerco da polícia. Ivam Marisco, apesar
da cadeira do dragão, tinha os membros inteiros e nenhuma marca no corpo.
Num sábado ao fim da
manhã, o Recife assemelha-se a uma caneca de chope cheia, e cheira a bolinhos
de bacalhau suados de tanto óleo. O bar não é um ponto de comércio, é um abrigo
para a quietação de almas peregrinas. Marconi Martinho, por fim, recupera a
serenidade de pôr-se à vontade. Ivam Marisco ainda tem sobressaltos para desconfiar
de que mesmo na sombra, um torturador o espreita.
O policial de paletó e
calça de um cor só entra no Bar Brahma Chope. Move-se como se estivesse nos
corredores que dão acesso ao buque da Secretaria de Segurança Pública. Tem o
paletó aberto. Vê-se o cinturão de balas rodeando toda a cintura. Não é um
homem bomba, inda que prenhe de intenções fatais. As roupas têm a cor do vinho,
iguais aos das garrafas que enfeitam as prateleiras de um lado e de outro do
bar. O vinho ou o frescor de sua cor estimula a sede, a gula. Em Ivam Marisco,
o efeito foi o de sentir-se expelindo golfadas de sangue; tão real que seu
rosto perdeu a coloração própria para dar lugar à palidez lívida do susto.
O policial passou
perto dos dois. Sentiu-se o cheiro do perfume borrifando às pressas, junto ao
bolor de encardimento no couro do cinturão e do revólver. O vapor do suor, Ivam
Marisco sorvera-o nas sessões de tortura. Os dois amigos retomaram a conversa
muda, com confissões abundantes de revelações nos olhos aflitos, inquisidores.
Marconi Martinho
compungiu-se com o sofrimento do outro. Não pôde evitar a dedução de que, mesmo
despistando a polícia inventando um paradeiro qualquer do amigo em fuga, não
hesitaria em indicar o endereço real caso soubesse.
Ivam Marisco hoje tem
os ombros largos. Dirige um automóvel novo, automático, de sua propriedade. É
casado com uma mulher tagarela, mais inteligente que ele. Os anos os deixaram
vergados um ao outro; ele, à bisbilhotice gratuita da mulher; também achou
conveniente prover-se das especulações nas refeições, na sesta e na cama. Ela,
à domesticidade dele, acostumado a deduzir o mundo sem sair dos limites da
casa.
Os dois amigos
encontram-se todos os anos. Para conversar, Ivam Marisco acode-se no uísque e
na literatura de autoajuda. Diz, para se crer fiel às origens da formação do
povo, apreciador da cultura afro-brasileira. Aponta as fontes com modos e tom
de voz de pesquisador. Não consegue sair do lugar-comum. Marconi Martinho
concorda, dando-se conta de sua sujeição à mediocridade disfarçada do amigo.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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