Seca, fome e preconceito
* Por
Mouzar Benedito
“Parece que veio do
Ceará!”
Quem é de uma geração,
digamos, mais antiga, com certeza já ouviu alguém falar isso em tom
repreensivo, para alguém que está comendo alguma coisa com voracidade.
Eu mesmo ouvi muito
essa expressão, que me veio à lembrança com os comentários sobre a falta de
água em São Paulo, quando muita gente disse que se sentia no Sertão Nordestino.
Mas não se compara.
Aqui, faltou água na
minha casa um dia, eu fui ao supermercado e comprei alguns galões. E comprei
comida também. É muito diferente dos lugares em que as pessoas têm que produzir
sua própria comida e a falta d’água representa também falta de ter o que comer.
Já viajei muito pelo
Nordeste, não nos períodos mais graves de seca, mas deu pra sentir um pouco a
barra.
Num povoado chamado
Poço de Fora, na beira do Raso da Catarina, no norte da Bahia, fazia três anos
que não chovia quando passei lá. Quando estava chegando ao povoado, deu uma
chuvinha. Fiquei alegre, mas logo me informaram: esse tipo de chuva provoca a
chamada “seca verde”: as folhas das árvores ficam verdes de novo, mas é pouca
chuva e a água não chega a penetrar no solo, continua não sendo possível
plantar nada sem irrigação. E não tinha água ali perto para irrigar nada.
Em Poço de Fora comi
pela primeira e única vez a famosa buchada de bode. Achei o paladar forte
demais, mas comi sem reclamar. Seria uma ofensa desprezar a comida que me
ofereceram, ainda mais numa situação de seca duradoura.
Numa estrada que vai
de Garanhuns rumo ao estado de Alagoas, toda esburacada (quem reclama das
estradas hoje precisaria viajar por elas antes – esta viagem foi em 1999).
Crianças preenchiam os buracos com terra e pediam moedas aos poucos viajantes
que passavam por ali. Mesmo com elas tapando buracos na estrada teoricamente
“de asfalto” não dava para andar a mais de 20 km por hora.
Brinquei com uma amiga
pernambucana dizendo que aquelas crianças deviam passar a noite retirando terra
dos buracos para colocar de novo durante o dia para “mostrar serviço” e ganhar
algumas moedas. Brincadeira de mau gosto.
Minha amiga me contou
que poucos dias antes tinha ido um pouco mais distante pela mesma estrada e,
quando viu meninos tapando buracos nela, ofereceu moedas a eles. Eles não
aceitaram. Disseram: “Dinheiro pra quê? Não tem o que comprar aqui. A senhora
não tem bolacha, fruta, qualquer coisa de comer?”.
Fome não é apetite
Bom, esses comentários
têm a ver com o preconceito que certas pessoas têm contra essas vítimas da
seca. Gente de classe média e alta não têm ideia do que seja fome. Quando
alguém assim diz “Estou morrendo de fome” é porque está atrasado para o almoço
ou coisa do tipo.
A fome de verdade, por
que passam vítimas do clima e do sistema econômico é diferente. Elas não comeram
anteontem nem ontem, não comeram hoje e não sabem se vão comer amanhã.
Conversei muito com quem já passou por isso. É dolorido e parece que o estômago
quer “engolir” outros órgãos.
Mas antes de voltar ao
dito “parece que veio do Ceará”, quero tratar um pouco mais das secas na
região.
O histórico de secas
no Nordeste remonta ao início da colonização, e há registro de secas trágicas
já em 1604. E elas se sucedem, atingindo cada vez mais gente, porque a
população aumenta. E com o aumento da população, aumenta também o desmatamento
por causa do crescimento da agropecuária, e assim, além de ter mais gente para
diminuir a mesma água, na verdade há menos água ainda, por causa desses
desmatamentos.
Desde o Império que se
procura uma solução para as secas nordestinas, mas não há “solução” mágica.
Lembro-me de quando trabalhava no Guia Rural Abril e numa reportagem que
fizemos um pesquisador dizia: “Não é possível vencer a seca. Temos que aprender
a conviver com ela. O suíço, por exemplo, não pensa em vencer a neve.
Desenvolveu formas de conviver com ela”.
E isso está sendo
feito progressivamente, há vários anos. Não estou atribuindo isso a “bondades”
de qualquer governo, embora a eficiência da grana aplicada na região tenha
muito a ver com essa “solução”.
Dinheiro para socorrer
“cassaco”?
Em 1909 foi criada uma
Inspetoria de Obras contra as Secas, que começou a construir açudes na região.
Essa inspetoria acabou virando o DNOCS, em 1946.
DNOCS é a sigla de
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, hoje ligado ao Ministério da
Integração Regional.
Ele construiu desde
então muitos açudes e passou a desenvolver projetos que vão além de construção
de açudes e cisternas.
Mas durante muito
tempo, nos períodos mais graves de seca, o governo mandava muito dinheiro para
socorrer os “flagelados”, mas o dinheiro nunca chegava a eles, parava sempre
nas mãos de latifundiários e políticos. Aliás, os políticos dominantes eram
quase sempre latifundiários ou ligados a eles. Esse despejo de dinheiro que não
produzia resultado nenhum, chamado “Indústria das Secas”, servia para aumentar
ainda mais as desigualdades e a violência na região. Até hoje acontecem coisas
desse tipo, mas antes era pior: não chegava nada aos pobres.
Os trabalhadores viam
isso e, sem instrumentos para combater essas injustiças, ironizavam. Diziam que
a sigla DNOCS significa Deus Não Olha Cassaco Sofrer.
Aqui cabe uma
explicação: cassaco é um dos nomes do gambá no Ceará e em Pernambuco. Por algum
tipo de ironia passaram a chamar de cassacos os trabalhadores pobres,
principalmente dos engenhos e usinas de açúcar.
Origens do “ditado”
preconceituoso
De 1877 a 1879 houve
uma seca tão braba, principalmente no Ceará, que a população migrou em massa.
Dos 800 mil habitantes que havia no estado, 120 mil foram para a Amazônia,
trabalhar nos seringais. Quer dizer, 15% da população do Ceará foi para a
Amazônia, com promessas de trabalho com assistência e pagamento justo, além de
outros benefícios.
Claro que nada foi
cumprido.
E fora esses que foram
para lá, mais 68 mil migraram para outros estados. Saíam famintos rumo ao sul e
quando encontravam comida comiam com avidez enorme.
Nas secas que se
sucederam no século XX, as “soluções” apresentadas para o problema social que
elas causavam, eram sempre parecidas. Chegou-se a construir verdadeiros campos
de concentração no Ceará para “abrigar” as vítimas das secas de maneira que
elas não pudessem sair saqueando alimentos, incomodando os “coronéis”. E
durante a Segunda Guerra, quando precisavam de novo de mão de obra nos
seringais para abastecer de borracha os aliados, pois os japoneses tinham
tomado os seringais do sudeste da Ásia, as secas serviram para forçar, de novo,
pobres vítimas delas a irem trabalhar num regime de semiescravidão na Amazônia.
Creio que essa fama de
migrantes (no caso, cearenses), de comer com voracidade quando encontravam
comida, começou com essa seca de 1877 a 1879, quando muitos vinham para o “sul”
em condições precárias e sem assistência alguma. E como houve novos surtos como
esse no século XX, o dito preconceituoso permaneceu.
Apesar de tudo, humor
Sempre tive uma grande
admiração pelo humor dos nordestinos que, mesmo sofrendo, fazem piada sobre
suas condições. Às vezes fazendo gozações com pessoas de outros estados.
Uma vez, viajando de
vapor no rio São Francisco, havia gente de vários estados e eles começaram a
brincar uns com os outros.
Relembraram velhas
piadas.
Um disse que no sertão
de Pernambuco as vacas usavam óculos rayban, para enxergarem o capim verde.
Outro disse que no
Piauí as vacas dão leite em pó.
Outro, ainda, disse
que na Bahia, com a seca, o povo só comia farinha, e por isso não usava papel
higiênico quando iam ao banheiro. Usavam espanador.
Eu meti minha colher
no meio, provocando um cearense meu amigo. Disse para todos que no Ceará tem
sapo de dez anos que não sabe nadar.
E todos riram.
* Jornalista
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