Viagem ao fundo do ego
* Por
Mara Narciso
Na minha visão de
mundo, nada poderá ser mais importante do que a satisfação imediata dos meus
desejos. A minha saciedade plena em todos os sentidos é a razão de ser do meu
universo pessoal. Os meus pensamentos não serão conhecidos, mas serão adivinhados.
E que não precise acontecer um olhar, ou um leve oscilar de dedos, ainda que a
minha mão permaneça suave sobre a mesa. Não suportarei, por menor que seja,
nenhuma contrariedade. Eu não tenho sonhos, eu não tenho aspirações, eu tenho
prazeres sanados de forma antecipada. Para mim não existem os outros, a menos
que possam prover a minha sanha de satisfação. Não existe dentro de mim nenhuma
paciência ou compreensão. Falhas serão cobradas com açoites, e caso se repitam,
um tiro na nuca, ainda que figurado,
ocorrerá para a família pagar o projétil.
Após uma mínima falha,
caso venha de joelhos beijar a minha mão, e lamber meus pés, não lhe lançarei
nem mesmo um olhar. Não gasto nada com pessoas desprezíveis. O que dizem de
mim, desconheço, e acho que ruins são os demais. Não tenho sentimentos e
algumas vezes nem mesmo pensamentos outros que não sejam para o meu prazer de
egoísta insaciável. O que me importam os outros? São meras figurações para que
eu brilhe. O centro do mundo sou eu, e que os meus serviçais resolvam qualquer
imprevisto, sem que seja necessário vir ao meu conhecimento. Não gasto décimos
do meu tempo nomeando problemas.
Tudo gira em torno de
resoluções para a minha paz e sossego. Jamais perco a compostura, ou me movo.
Respiro de forma tão sutil que nem mesmo embaço um espelho, caso coloquem algum
deles perto da minha boca suave. Não existe suor, não exalo nenhum odor. Meu
alimento é o néctar, e as excreções somem no ar como fluidos incorpóreos
invisíveis.
Tédio, monotonia, existência
vazia, nada para pensar amanhã? Debocho de tudo isso. São coisas humanas. Estou
acima dos reles mortais. Tripudio sobre todos e qualquer um de vocês. Quem sou?
Não gasto explicações com isso. Por exceção, hoje estou a diluir pelo ar, de
forma magnânima, algo que possam compreender. Estou numa dimensão muito além do
que a mente humana possa idealizar. Pessoas que se mostram indiferentes, me
perguntam se tive pai e mãe, e se mamei num seio materno. Não sei. Na
construção da minha superioridade e autossuficiência, isso pouco importa.
Para ser como eu,
indiferente aos sentimentos humanos e suas mediocridades, tive um início de
existência que não importa quando e nem onde. Atingi esta situação de
equilíbrio idealizado e jamais alcançado. Sou e isso é suficiente. Aqui no meu
estado espiritual não há medo, nem dor, nem qualquer incômodo, por menor que
seja. Estar assim é bom. Minha apatia com o sofrimento é tal, que nem penso
nisso. Devo ser aquele alguém que os psiquiatras juristas chamam de mente psicopata.
Eu não mato o corpo, eu
mato a alma, com frieza e indiferença. Eu roubo a paz. Eu trago a guerra de
espírito. É a mesma coisa, quase, e fico impune. Membros esperneantes não me
sensibilizam. A lei não me alcança e nada pode fazer contra mim. Nisso sou
imortal e gozo de inalcançável impunidade. O meu prazer é destruir pessoas,
jogá-las ao leu, triturá-las, reduzi-las a pó. E quando me perguntam se isso
não é aborrecido, respondo que nessa arena, mando eu, dou todas as cartas,
incluo e excluo ao meu bel prazer, e ao final, dou a minha risadinha de desdém.
Obedeçam-me. Afinal, o
mundo que coordeno é todo meu. Embora me pareça com um príncipe, sou um
semideus das profundezas. Talvez seja imortal. Ainda que não gostem dos meus
métodos, é assim que sou. E o melhor: eu não me importo se gostam ou não de
mim.
*Médica endocrinologista,
jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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