Big Brother sonoro
* Por
Marcelo Sguassábia
- Um diário fonado.
- Como assim, um diário
fonado?
- Você liga um desses
gravadorzinhos digitais e vai gravando tudo o que se passa. Eu disse tudo. Mas
não um diário como os outros, onde alguém narra o que acontece de mais
importante. É a vida gravada mesmo, um “Show de Truman” em áudio. Quando a
memória do gravador estiver cheia, descarrego no computador e começo a gravar
de novo, indefinidamente. Dia após dia, ano após ano.
- Ah, sei. Você
desperta e vai dizendo: “abri os olhos, são seis e trinta, coloquei os dois pés
no chão, primeiro o direito, depois o esquerdo, calcei os chinelos”...
- Pára, eu tô falando
sério. Não é descrever o que rola, é viver com o gravadorzinho ligado. Como um
“Big Brother”, mas sem as imagens. Olha só, agora mesmo estou gravando nossa
conversa, que vai ficar pra posteridade. Veja aqui o bichinho escondido no meu
bolso.
- Que idéia maluca. Pra
que isso?
- Hoje pode parecer
absurdo, mas imagine o valor de um documento assim pras próximas gerações. A
sociedade do futuro saberá como era a vida das pessoas no século 21. Eu digo a
vida íntima, o cotidiano nu e cru, entende? Nossos bisnetos herdarão uma
relíquia de incalculável valor histórico. Nunca ninguém fez isso antes. Imagine
se você pudesse ter acesso ao registro da vida da sua bisavó, minuto a minuto.
Não seria sensacional?
- Isso inclui cada
instante vivido, sem intervalos?
- Claro. Se editar,
perde a credibilidade.
- Sei, e quando a gente
estiver na cama? Vai que alguém rouba a traquitana e devassa nossa intimidade,
pensa bem... Outra coisa, e na hora de ir ao banheiro? Entram até, digamos
assim, as manifestações orgânicas de caráter involuntário? O barulho da
descarga? As escovações de dente?
- Tudo,
ininterruptamente, até o último suspiro.
- Que mórbido.
- Gravaremos o primeiro
choro do nosso filho, os gritos na montanha russa, os rojões nos jogos da Copa,
pessoas reclamando da fila que não anda, o motorzinho no dentista, a fala dos
pedintes nos semáforos... não vamos mais correr o risco de não lembrar das
coisas. O inventário detalhado da existência estará sempre à mão. Basta um
“rewind” pra reviver os melhores momentos.
- Bom, já que é pra
registrar, por que não faz isso em vídeo?
- É que aí a gente vai
querer ficar arrumadinho o tempo todo. Quando uma câmera é apontada pra você,
acabou a espontaneidade. Fora que o áudio vai mexer mais com a imaginação de
quem estiver ouvindo lá no futuro. É como as radionovelas, só que uma
radionovela real, que dura décadas. Se Deus quiser, né.
- Ok, suponhamos que
você viva mais 50 anos. Será meio século de áudio estocado. Se algum louco se
meter a escutar isso, vai perder 50 anos da própria vida pra ouvir o que você
gravou. É preciso muito amor à sua pessoa ou à pesquisa antropológica, não acha
não?
- Mas também não é
assim. As 8 horas diárias de sono não seriam gravadas, porque aí não acontece
nada mesmo. Seriam 16,6 anos de gravação a menos.
- Ah bom, aí já dá pra
encarar a empreitada. São só 33 anos na escuta! Ora, tenha paciência.
- Repare que
interessante metalinguagem: estou gravando você falando da gravação que a gente
está fazendo. Maluco, né?
- Então, mas o
problema...
(Neste momento,
aparentemente, houve pane no gravador. Não há registro da continuação da
conversa).
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Exatamente como começaram as gravações de viagens em videocassete. O terrível e insuportável era aguentar ver aquilo. Pobres amigos!
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