Um
artista pós-moderno*
** Por José Paulo Lanyi
(Cozinha. Panelas, talheres, telas e aquarelas pendurados.
Legumes e frutos espalhados pelo chão. O Artista Joseval descasca uma laranja.
Ao fim, joga-a, solícito, para um de seus assistentes – todos estão ali,
sentados de frente para o artista e de costas para a platéia, nas cadeirinhas
de armar. O assistente agradece e chupa a laranja; a fruta é passada de mão em
mão. Todos os assistentes a saboreiam. O Artista Joseval pega uma das telas que
estão penduradas e anda em direção aos assistentes; ainda com a tela na mão,
toma uma sacola que está sob a cadeirinha de um deles. Pousa a tela sobre o
fogão; retira um prato de comida da sacola; despeja a comida sobre a tela; pega
os talheres, apanha a tela e põe-se a comer sobre ela. Quando termina, passa um
pano na tela e pendura-a com os outros quadros).
ARTISTA JOSEVAL
Temo por vocês, meus filhos. (em seguida, aponta em
direção à platéia) Estão vendo aquela escada ali atrás? (assistentes olham e
dizem que sim. Enquanto o Artista Joseval fala, todos mantêm a atenção na
escada). Um dia eu tive de... Um dia... Hei! Alguém aí sabe quanto foi o jogo
de todas as loterias?
UM ASSISTENTE
QUALQUER
Todas do mundo?
ARTISTA JOSEVAL
Você tem aí?
UM ASSISTENTE
QUALQUER
Bom... Quase todas...
ARTISTA JOSEVAL
Lá! Olhem todos! Está faltando um degrau?! (assistentes
olham para a platéia, onde está a escada imaginária) Olhem aqui! Olhem aqui
para a minha barriga (Ele ergue a camisa) Está faltando um grãozinho aqui? Um
grãozinho? Hã?
(Dois assistentes se atracam e saem rolando. Um grita:
Está!; o outro: Não!, alternadamente, várias vezes. Uma caravana de beduínos
atravessa a cozinha. Eles param para olhar a luta, fazem apostas, dançam e
xingam. O Artista Joseval observa-os com interesse e uma expressão de bonomia.
Os assistentes imitam-no, satisfeitos e sem demonstrar surpresa. Os andarilhos
recolhem os legumes e os frutos e vão embora. Os assistentes que brigavam param
a luta e correm atrás dos beduínos; os dois assistentes estão exaustos e
feridos; cada qual geme seu “sim!” e seu “não!”, até deixar o palco de
gatinhas)
UM OUTRO ASSISTENTE
QUALQUER (levanta-se e brada)
Viveremos? Saberemos muito, Artista Joseval?
(Artista Joseval fita-o por vários segundos. Deita-se no
chão, vira-se para o outro lado e dorme. O assistente ainda está em pé,
esperando a resposta. Os demais levantam-se e, ansiosos, passam a aguardar a
palavra do artista. Nada acontece. Silêncio. Os assistentes se entreolham. Cai
a luz).
* Da peça “O Artista Joseval” publicada no livro “Balbúrdia
literária”.
(**) José Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo,
autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance
cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça
"Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea
“Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos” (no prelo), todos da editora O
Artífice. Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem
compôs a trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica”.
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