quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Daqui para o sonho é um pulo

* Por Mara Narciso

“Andei, andei, andei e cansei. Cansei, cansei, cansei e parei. Parei, parei, parei e sentei. Sentei, sentei, sentei e deitei. Deitei, deitei, deitei e dormi. Dormi, dormi, dormi e sonhei. Sonhei, sonhei, sonhei que andei...” (‘musiquinha’ interminável que a minha mãe cantava e estava escondida em minha memória).

É fácil entrar num mundo de sonhos. Naquele lugar fluido do sonho bom. Basta chegar de supetão em frente ao Casarão da Fafil, e encontrar em plena rua uma pequena multidão se apertando diante de uma porta. Do interior do Patrimônio Histórico ecoa uma voz feminina que sobrevoa o Corredor Cultural e se perde ao longe. Sua melodia inebria pessoas que estão fixas numa cena: dentro do prédio braços e pernas se contorcem, esticando e se dobrando, feito cobra enfeitiçada por música, a linguagem da paz. É um dançarino, de camisa branca, que tem um foco de luz sobre si. O que seria aquele espetáculo em plena rua? Quantas surpresas nos trazem essa menina chamada Montes Claros, “cidade da arte e da cultura”, como bem grafou Reginauro Silva? Mas dizem as línguas nada boas, que nesta cidade atrasada não acontece nada.

De súbito, a luz interna se apaga, a porta se fecha com um ranger, retumbando via afora e outros dançarinos, que estão na rua pedregosa, disfarçados e junto aos espectadores, começam a dançar, provocando interação. Estendem os braços chamando, e do nada o povo se vê dentro do espetáculo. Quando a música termina, o grupo entra no casarão seguido pelo seu público, porta adentro, como num funil. De que maneira fugir dessa flauta de Hamelin? O jeito é comprar ingresso e seguir junto. O ambiente está às escuras. Pessoas estão sentadas no chão, vestindo suas roupas, shorts, camisetas e joelheiras. Não há separação entre público e atores. Palavras de ordem são ditas, direcionando por onde passar no corredor e escadas. Ao fundo está o pátio. Tudo é breu. O palco e os espectadores fundem-se numa coisa só. A parte mais densa do show já vai começando. O público se ajeita como pode. Talvez estejam ali umas 200 pessoas. É algo grandioso que está acontecendo.

No fundo negro do palco, passa um filme em alta velocidade. Esse filme começa e descomeça, conforme exige a ação. É o centro de uma metrópole. O público é jogado dentro do turbilhão de tráfego, luzes e multidão em ritmo acelerado. Em cena 18 dançarinos se revezam em mostrar uma dança moderna, tipicamente urbana, fazendo uma exposição crua e dramática do que se passa nas ruas das grandes cidades. Passos duros, sugerindo marcha de militares, são mostrados. Assim como gestos delicados, suaves, rápidos, e até a sugestão de um parto, ou de um morador em situação de rua, vestindo suas roupas. O esporte de escalar paredes é mostrado, multidões apertadas, danças de rua como break, com um show ultraforte. Depois vem a capoeira, outra marcha. Sem intervalo entre as apresentações. Mais surpresas, casais, lutas, duplas, apertos. E pasmem: uma pichação ao vivo. Sob dois holofotes um rapaz picha de branco a parede preta lá no topo, desenhando prédios com habilidade ímpar.

Analiso tudo, busco explicação, mas o que sinto é o que me importa. Inclusive quando a natureza invade a cena com suas flores se abrindo. Porém, em ritmo acelerado, como convém a uma grande cidade. Cada detalhe é programado para comunicar, endurecer, impactar. Somos nós os personagens dessa loucura chamada vida. De um lado a força da juventude, de outro o molejo de corpo de gente preparada para o ofício de entreter, com seus jogos de braço e de cintura, formando pirâmides, escalando sentimentos, despertando o gosto pela dança. No fundo escuro, que se apaga e se acende, vão passando flashes urbanos como gente em estação de metrô e dentro de conduções apertadas. Há momentos em que a disputa por espaço é asfixiante, inclusive com atores mostrando respiração agônica.

Nas aglomerações que se tornaram as grandes cidades, há espaço para muitas disputas, e pouco espaço para o homem. E, em cena, gente de todos os estilos, etnias e idades, além de conformações físicas diversas. Na verdade, uma amostra humana do que é viver num grande centro, com seus entretenimentos e sufocações.

O prospecto diz que os bailarinos do “Grupo de Dança Compassos – Unimontes” idealizaram o espetáculo, que fala de “temas muito próximos de nós como a própria vida, a ciência, o desenvolvimento, a tecnologia e a velocidade”. E também “inovações cotidianas sentidas no olhar, no deslocar, no experimentar”. O show foi concebido por Elisângela Chaves, que também dirige e assina a coreografia. A cenografia e iluminação, que dão alta tensão e dramaticidade ao que se vê, foram feitas por Paulo de Tarso e André Lacerda. Continua em cartaz com trilha sonora Underworld, Pedra Branca Organismo Eletrônico, Matrix, Sex-InThe Track e Alice Encantada. Chamado “É muito rápida esta história”, o espetáculo é sim, rápido e belo e carrega o público ao estado de embriaguez. Do nada acontece um sonho, porém, sem sono. Sem sono nenhum.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


3 comentários:

  1. Sonhos como esse tão bem descritos por você nos fazem esquecer do compromisso com o travesseiro.
    Abraços Mara.

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    1. Sem querer a vida nos oferece um espetáculo inesquecível e um prazer que nem sabemos descrever. Obrigada pela presença e comentário, Núbia.

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  2. Mara, suas lítero-reportagens têm o dom de nos transportar para Montes Claros. Parabéns por mais esta.

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