Pondo a baguete no forno
* Por
Fernando Yanmar Narciso
Como seria possível pegar um livro incrivelmente confuso, escrito na
França em meados do século XIX, com mais páginas e personagens que a lista
telefônica de São Paulo e transformar tal obra num filme musical para a geração
atual de jovens, fãs de Glee e High School Musical? Simplesmente,
não foi possível. Mas, na tradição de Hollywood de adaptar obras consideradas
infilmáveis para as telonas, foi exatamente isso o que aconteceu. Victor Hugo,
o poeta criador do Corcunda de Notre Dame, lançou em 1862 a epopeia definitiva
de sua geração: Os Miseráveis.
Passada em três períodos revolucionários distintos da história francesa,
o livro engloba mais ou menos 20 anos da vida de dois homens destinados a se
odiar. A obra tem motivações mal explicadas, reviravoltas mirabolantes e
dramalhão rasgado bastantes para fazer cem novelas mexicanas. Os Miseráveis
é uma daquelas fábulas imortais que as pessoas não se cansam de adaptar,
praticamente cada década teve uma versão em filme do livro. Houve diversas
adaptações para a TV, teatro, cinema e uma premiada peça musical da Broadway,
que serviu de inspiração para o diretor Tom Hooper lançar, em 2012, um dos
filmes mais ostensivos, ambiciosos e confusos da história do cinema britânico.
Vamos à história: No final da Revolução Francesa, o prisioneiro Jean
Valjean (Hugh Jackman, o Wolverine) consegue liberdade condicional, após 19
anos de trabalhos forçados por roubar um pão e por suas constantes tentativas
de fuga da prisão. Um inspetor implicante chamado Javert (Russell Crowe, “cantando”
como se tivesse apostado a mãe no pôquer e perdido...), que coordena os
trabalhos forçados, tem uma rixa incompreensível com Valjean (Bem melhor
explicada no livro e em outras adaptações) e promete que o trará de volta à
prisão algum dia.
Após mendigar por alguns dias, o liberto é acolhido por um bispo bondoso
(Colm Wilconson, que faz o próprio Valjean na Broadway), a primeira pessoa a
demonstrar compaixão pelo protagonista em anos. Comovido pelas ações do padre,
ele resolve dar uma reviravolta no que sobrou de sua vida, joga fora seu
certificado de condicional e foge para, que ironia, tornar-se um homem
honesto... E, na cena seguinte, oito anos se passaram e ele já aparece com um
novo nome, como prefeito de um vilarejo. Não se preocupem se ficarem perdidos
enquanto leem minha resenha, o filme tem uma TONELADA de história pra contar em
tempo recorde...
Fome, miséria e morte estão em cada esquina da França
pós-revolucionária, igualzinho a antes dela. Somos apresentados à sofredora
Fantine (Anne Hathaway, sensacional), que é demitida injustamente de uma
fábrica, cujo dono é Valjean, por causa de fofocas de suas colegas de trabalho.
Desesperada, pois tem uma filha bastarda pra sustentar, ela vende os cabelos,
dois dentes e se prostitui por uns trocados, tudo em apenas cinco minutos de
filme. Ela sofre tanto em tão pouco tempo que se essa personagem não serviu de
inspiração para qualquer mocinha de novela que já foi criada, eu não manjo nada
de folhetim. Por coincidência, Valjean aparta uma briga entre Fantine e homens
que queriam violentá-la, ela o reconhece e lhe cobra uma compensação por seu
sofrimento.
Comovido com a história da moça- que, por sinal fica inexplicavelmente a
um passo da morte dez minutos depois- ele promete resgatar sua filha, Cosette
(a assustadora Amanda Seyfried), que foi deixada com taberneiros cruéis, e
cuidar da educação dela como um pai adotivo. Estranhamente, parece que a última
ação de Fantine antes de morrer é fazer com que Jean se apaixone por ela, mas
não antes do implausível obcecado Javert, agora chefe de polícia do vilarejo,
conseguir descobrir o paradeiro de Valjean, esgrimir com ele e persegui-lo por
metade da França na calada da noite.
Quando pensamos que o filme abriria espaço para algum desenvolvimento da
relação do pai com sua nova filha... No último ato passaram-se nove anos,
Valjean é quase ancião e Cosette já está na idade de casar! Anyway, o movimento
Tea Party se uniu ao Black Bloc francês para organizar mais uma revolução
popular contra o rei. Os rebeldes pretendem usar o funeral de um famoso
revolucionário como pretexto para entrar em guerra contra o exército. Jean
continua a fugir de Javert e esconder seu passado da filha adotiva. Marius
(Eddie Redmayne, ridículo), um dos rebeldes, vê Cosette passando pela rua e é
paixão à primeira vista (Igualzinho à vida real, eu diria).
Enquanto Javert se faz passar por rebelde para se infiltrar no exército
inimigo, Valjean se vê envolvido no conflito após receber por engano uma carta
de Marius endereçada à sua filha. Querendo o melhor para ela, o homem faz
questão de conhecer o pretendente no momento mais apropriado possível: Em meio
ao fogo cruzado da batalha. Meio que alistado à força, Jean promete levar o
futuro genro vivo até Cosette, mesmo que isso possa lhe custar a própria vida.
O cenário apocalíptico acaba se tornando a oportunidade ideal para o
protagonista reconquistar a própria honra e encerrar as desavenças com seu
incansável algoz. Temas naturalmente apropriados para um musical, não acham?
Na tradição de musicais, este também é megalomaníaco, escandaloso e
histriônico até os ossos. Fazer um material que, quando muito, poderia
preencher nove meses de capítulos de uma novela, caber em duas horas e meia de
filme tornou o enredo mais atropelado que os pedestres de GTA. É como se você
saísse de uma montanha-russa e alguém te arrastasse para outra ainda maior logo
em seguida, e repetisse o processo mais dez vezes. OK, ele pode ser
incompreensível em partes e um tanto estranho em várias outras, mas isso não
quer dizer que seja um filme ruim. Quanto ao aspecto técnico e à trilha sonora,
fez e muito por merecer as indicações ao Oscar deste ano, do qual Anne Hathaway
saiu com a estatueta de melhor atriz e, de quebra, tornou-se uma das
celebridades mais odiadas pelo público norte-americano, por causa de seu
discurso de recebimento no estilo“unhas na lousa”. Claro que a obra de Victor
Hugo é um melodrama rocambolesco da primeira a última página, mas é melodrama
rocambolesco de qualidade. Ter praticamente uma adaptação por década é um feito
do qual poucos dramaturgos podem se gabar. Vive la France!
*Designer e escritor. Sites:
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