segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Aposentado

* Por Rubem Alves

Por mais que procurasse, só consegui encontrar uma: a de Quincas Berro d’água. Os feitos de homens aposentados não são bonspara se fazer literatura. Faltam-lhes os ingredientes que dão sabor a uma narrativa movimentada. Já não se prestam a façanhas atléticas, estão fora dabriga pelo poder e não são os tipos ideais para as grandes aventuras amorosas. O Quincas Berro d’água foi uma exceção. Homem pacato, de hábitos parecidos aos de boi de carro, acostumado a puxar a carga sem reclamar, obediente ao ferrão, assim era o silencioso Quincas, fiel funcionário público que, ao fim do mês, entregava o salário inteiro para a mulher, de voz ardida e fina, característica que passara para a filha, sua fiel aliada.

O Quincas vivia assim, ruminando sua imensa solidão. Jamais passaria pela cabeça de ninguém que ali dentro daquele homem prestes a se aposentar moravam sonhos jovens de liberdade e de amor. A revelação aconteceu no dia em que se cumpriram os dias para a sua aposentadoria. Quincas voltou para casa, do mesmo jeito de sempre, silencioso,andar arrastado, nada fazendo suspeitar o que iria acontecer em instantes. Foi para o quarto. A mulher e a filha pensaram que iria botar o pijama e os chinelos, o único uniforme próprio de alguém que se aposenta. Pois não é que o Quincas sai de lá, momentos depois, com uma malinha na mão? “Onde é que você pensa que você vai?”, a voz ardida da mulher verrumou-lhe os tímpanos, no que foi seguida pelo chocalhar de guizos da filha viperina.

Quincas não respondeu. De dentro dele, saiu um grito selvagem que elas nunca imaginaram que houvesse: Jararacas! E desapareceu, sem outra explicação, porta afora. Começa aí, então, a história de um aposentado feliz... Quem quiser saber o resto, que leia o texto do Jorge Amado.

Lembrei-me de uma outra história de aposentado. Uma peça de teatro que vi, muitos anos atrás, o nome eu me esqueci. A cena acontecia num banco. Poderá haver lugar mais chato para se passar a vida? Números, números, números - só números. Pois o clima era de festa, pois um dos funcionários, já calvo e de dentadura, iria se aposentar. Era o assunto de todos. Finalmente o fim do sofrimento estava chegando para um deles. Dali para frente estaria livre, totalmente livre, para fazer o que quisesse. Nada de horários, cheques, duplicatas, promissórias, contas que tinham que dar certo: poderia dormir quanto quisesse, fazer o que lhe desse na telha. O desejo que por 35 anos ficara preso dentro da gaiola iria voar pelo espaço sem fim. Os outros sorriam de inveja e faziam as contas para saber quantos anos lhes faltavam ainda para este dia portentoso.

O segundo ato acontecia depois da sua aposentadoria. Pois sabem o que ele passou a fazer, depois de aposentado? Todos os dias, sem faltar um só, ele ia para o banco e lá ficava, sem mesa onde sentar, sem ter o que fazer, olhando, olhando, com saudades e um ar triste no olhar.. Coitado! Passara tantos anos na gaiola que desaprendera a voar. Não sabia o que fazer com o infinito.

Não é por acaso que, com freqüência, os aposentados morram logo. Um amigo meu, com quem me encontrei na feira (um dos meus passatempos favoritos. É bom ver as bancas de verduras, as frutas, as flores, os peixes...). sabendo que eu ia me aposentar, advertiu-me logo: “Olha não vá morrer...“ Estremeci ante esta advertência-profecia, mas tranqüilizei-me pensando que isto não iria acontecer comigo. Tranqüilizei-me, pero no mucho... Comecei a pensar nesta coisa estranha, que justamente o evento da liberdade para se fazer o que se quiser possa ser o começo do morrer. A situação dos homens é pior que a das mulheres, eu acho. Nossos arranjos sociais decretaram que. a casa pertence à mulher. Lembro-me, lá em Minas, que os feriados eram o terror das donas de casa (nunca ouvi esta expressão ser aplicada a um marido, dono de casa...). Os maridos ficavam como almas penadas, andavam pelos cômodos, metiam-se pela cozinha, davam palpites. Até que eram expulsos daquele lugar que não lhes pertencia com uma afirmação sobre que todos concordavam: “Lugar de homem é na rua!” E lá iam eles para as praças, sem saber o que fazer. Divisão de espaços que vem, com certeza, dos tempos em que os homens eram caçadores: o seu lugar era o mundo infinito. Um homem doméstico é o homem que perdeu a dignidade do caçador. As feministas, com toda razão, se rebelaram contra o uso da palavra doméstica para descrever a profissão da mulher que não quis se aventurar pelas caçadas. Usa-se, agora, uma expressão mais delicada: do lar. Mas é a mesma coisa. O que se está dizendo é que a casa é dela. Já imaginaram a mesma expressão sendo usada para se descrever o status de um homem aposentado?

Coitado do aposentado... Fica sem lugar. Acho que é por isso que ele morre logo. Na casa, não sabe o que fazer. Não aprendeu a habitar aquele espaço. Falta-lhe know-how
e autoridade. Para fazer, tem de pedir permissão. Se, por acaso, resolve visitar seu emprego antigo, sua aparição causa o espanto de uma alma do outro mundo. Dias atrás, na Unicamp,um professor me perguntou: “Que é que você faz aqui? Está perdido?” E a gente compreende que não houve choro nem vela: as oisas continuam normais, sem a gente por lá.

Aconselho a todos os que vão se aposentar, portanto, a que se livrem das fantasias de que a aposentadoria vai ser o início do tempo da felicidade. Até que pode ser... Mas, para isto, é preciso que o passarinho engaiolado não tenha se esquecido da arte de voar. E se me perguntarem como é que um passarinho engaiolado pode não se esquecer da arte de voar, a resposta é muito simples: É preciso não se esquecer da arte de sonhar. Quem é rico em sonhos não envelhece nunca. Pode mesmo ser que morra de repente.
Mas morrerá em pleno vôo. O que é muito bonito.

* Escritor, teólogo e educador, membro da Academia Campinense de Letras


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