Pão Duro
* Por José Calvino
Azambujanra não conseguia dormir, destilava a
cachaça tocando piano: Os noturnos de Chopin.. Já era uma hora da manhã e a sua
irmã mais nova reclamou da zoada do piano.
- Hoje eu não vou comprar pão – disse Azambujanra.
- Isso é um inferno! Vai dormir, homem, com essas
modinhas do tempo do ronca. É enchendo a cara de cana todos os dias, não
adianta a doutora Adriana receitar defunto, vai morrer – disse a irmã caçula.
Azambujanra comprava sempre pães do dia, mas a sua
amiga nutricionista passou uma dieta hipopurínica proibindo carnes vermelhas;
peixes (cavala, arenque, sardinha, atum e salmão; vísceras ( fígado, miolo, rim
e coração de boi ou de galinha); molhos industrializados...; crustáceos (
camarão, lagosta, caranguejo...); sopas industrializadas; cogumelo, espinafre;
chocolate; ovos...
Bem, Azambujanra ficou preocupadíssimo com a taxa
de glicose em seu sangue e um pouco com a abstinência daquilo o que ele mais
gostava quando ia à praia de Candeias: os peixes e crustáceos, agora proibidos.
No tocante ao consumo moderado, ele se animou com os alimentos protéicos:
peixes (com exceção dos proibidos), queijos, iogurtes; feijões; pães,
bolachas... Orientado pela nutricionista a comer sempre que possível soja em
grão ou proteína texturizada de soja e, comer todos os dias, uma castanha do
Pará . Evitar frituras... Manter o peso ideal. Na hipoglicídica, na atenção nos
rótulos, etc.
- Azambujanra pensa que eu sou da época dele. Eu
sou de Xuxa pra cá!
- E eu sou da época de Xuxa (escrivão de polícia,
anos 50) –disse Azambujanra.
Enquanto a sua amiga se referia a Xuxa Meneghel,
muitos risos e reminiscências foram contadas. Conversar com Azambujanra, é
chorar de rir, só conferindo. À medida que contava os cuidados com os alimentos
“light”,o pão dormido... Realmente ele era um verdadeiro ator. Por exemplo,
quando comprava os pães do dia os balconistas da padaria o tratavam de doutor:
- Diga doutor , quanto?
Quando passou a enfrentar filas para comprar pão
dormido:
- Trouxe o saco?
- Não!
- Na próxima traga.
O tratamento mudou, e em nome da verdade
Azambujanra era advogado, mas não era filiado à OAB, portanto não advogava.
Também se formou só para dar incentivo aos filhos e não ligava que o chamassem
de doutor. Notava que estavam pensando que ele não era porque não andava de
paletó. Andava simples, mais de bermuda. Para alegria dos “amigos”:
- Doutor Azambujanra – chamava os seus amigos, um
deles conhecido como mão-de-vaca, apelidado por ter a mão direita aleijada.
- Uma cerveja para o doutor – dizia mão-de-vaca.
Na ausência de “Mão-de-vaca”, diziam que nas
igrejas católicas ele colocava nas “Ofertas” uma moeda de um cruzeiro com a mão
direita aleijada e, com a esquerda, retirava com um biliro importância superior
à que colocava.
- Esse aqui é do santo, e esse aqui é de
mão-de-vaca.
Azambujanra era um homem revoltado porque escrevia
pra quem? Para Getúlio Vargas, Etelvino Lins, Agamenon Magalhães, Garrastazu
Médici?, todos falecidos igualmente aos vivos analfabetos, ignorantes de
esquerda, direita e centro.
- Lá vem “Pão duro” – disse o balconista da padaria
Nossa Senhora.
- Tá lascado!
- Esse homem ganha bem, não há necessidade pra
isso.
- É um pão duro! – disseram os pobres da fila que
chegavam na madrugada.
- Tá fudido, um homem branco, pirangueiro...
Final da história, hoje Azambujanra deixou de
enfrentar fila e voltou a comer pão do dia pra não ficar “francês”. A irmã
caçula deixou de reclamar, culpando Azambujanra por não ter conseguido emprego.
Uma vez Azambujanra chegou a dar um murro no birô, quebrando o vidro que ficava
em cima, protegendo o mapa do Brasil. Pensou no mestre José Amaro, personagem
do livro“Fogo Morto”, de José Lins do Rego quando ouvia o gemer da filha Marta.
Batia com mais força na sola. Hoje Azambujanra deixou de beber e fumar,
independentemente de AA, religião, etc. E de vez em quando alguém agora
pergunta:
- Cadê “pão duro”? Nunca mais eu o vi
- Dizem que ele tá é bem.
Azambujanra passa todo enfatiotado para o
escritório.
* Escritor, poeta e teatrólogo.
Blog Fiteiro Cultural - http://josecalvino.blogspot.com/
São várias personas em uma só. Enfim ficamos conhecendo seu amigo Azambujanra, José Calvino. Gostei muito dele e da narrativa, com laivos locais e alta cultura. Bem educativo o texto.
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