Sabedoria Grega em Oito Pilares
* Por Mara Narciso
A mestra em Literatura Karla Celene Campos, a nossa Rita Lee, dada a
grande semelhança física, é natural de Francisco Sá, sendo uma pessoa
hiperbólica, exagerada, imensa em tudo que faz. De alegria esfuziante, leva um
sorriso amplo e grande talento para a representação e escrita. Quando falou
sobre “O Amanuense Belmiro” do introspectivo Cyro dos Anjos, ótimo drama
psicológico, abriu os braços em demasia e passou adiante da obra. Agora o Clube
de Leitura Felicidade Patrocínio a recebe para apresentar “Os Oito Pilares da
Sabedoria Grega”, de Stephen Bertman, conteúdo do tamanho do seu talento
dramático. Karla Celene entrou vestida de Atena, a Deusa da Sabedoria.
Na 14ª reunião do Clube de Leitura, Karla Celene, que parece acreditar
nas pregações do autor, trouxe para os tempos atuais histórias da mitologia
grega. A platéia voltou-se para aquele mundo de 25 séculos atrás, que valoriza
a vida justamente por ela ser passageira. “A vida é bela e frágil, e não
devemos desperdiçá-la. É preciso viajar para dentro de nós para conhecermos as
nossas potencialidades”, diz a palestrante. E continua: “Precisamos da ajuda do
outro para caminharmos, pois nada faremos sozinhos, e para isso devemos vencer
a nós mesmos”. Muito será perdido caso a pessoa opte pelos maus instintos. Lá
dentro está a luz da razão. A partir dessa introdução desfilaram personagens,
por exemplo, Orion, que, sendo cego, colocou um menino nos ombros e foi a
lugares distantes. Quanto morreu, foi transformado numa constelação. Mensagem:
aceitar desafios é ir ao encontro da luz.
Expondo as ideias defendidas por Stephen Bertman, Karla Celene citou
aspectos filosóficos e os ilustrou com mitologia. Os gregos antigos fizeram uma
odisséia espiritual através de perguntas e pensamento crítico. “Podemos ser o
que queremos. Buscar respostas já faz valer a existência”, defende Bertman.
O primeiro pilar é o Humanismo, a celebração dos nossos esforços,
talentos e capacidades especiais. “Os gregos antigos acreditavam nos deuses,
porém, confiavam mais no homem e em sua luz divina. Não podemos deixá-la se apagar,
e para isso devemos soprá-la e dela fazer uma fogueira de entusiasmo”,
argumentou a palestrante. Continuou afirmando que a existência da morte faz a
vida valer mais. Como o homem joga para ganhar ou perder, precisa celebrar
quando supera suas fraquezas e vence: isso nos faz humanos.
Karla Celene lembra que uma representação artística de Dionísio, deus do
vinho, o mostra apático, enquanto os soldados, eternos guerreiros, lutam em
busca de dignidade. Noutra situação, o herói Ulisses, chorando na praia
junto com a deusa Calipso, opta por ser homem, deixa a ilha, onde poderia se
tornar imortal, e volta à sua origem. O homem transforma arte em alimento para
o espírito. O mesmo se pode fazer em relação à vida para torná-la algo de maior
valor.
A Busca da Excelência é o segundo pilar e ensina que ousar menos é ser
menos, então, pensar mais instiga a transformação. O homem tem uma casca humana
e uma centelha divina. O semideus Hércules, num acesso de loucura mata esposa e
filhos e através dos doze trabalhos recupera a dignidade perdida.
Para Stephen Bertman o tempo atual é aquele da hipercultura e do
hiperconsumo, o que deixa todos famintos, sendo uma forma equivocada de se
levar a vida. É preciso equilibrar razão e prazer para bem alimentar a alma.
Ser bom não é suficiente. É necessário vencer a frustração de não conseguir,
com paciência, perseverança e honestidade, para assim contaminar quem está ao
seu lado, e com isso homenagear a ascendência. No entanto, se deve evitar a
competitividade destrutiva, desvairada, assim como a arrogância e a vaidade.
Karla Celene citou Aracne, que tinha 12 filhos e disso se vangloriava sobre
Atena que só tinha dois filhos. A detratada matou os rebentos da outra e a
transformou numa aranha, para ficar tecendo por toda a eternidade.
O item anterior parece ir contra a Prática da Moderação, o terceiro
pilar. “Nem tanto ao sol, nem tanto ao mar”, foi o que recomendou Dédalo ao seu
filho Ícaro, quando finalmente conseguiram construir dois pares de asas com
penas e cera de abelha para fugir da prisão. Mas, diante do maravilhamento do
ato de voar, Ícaro se esquece dos conselhos do pai, voa alto e o calor do sol
derrete a cera. As asas se desprendem e ele morre afogado no mar. Outro que
pagou caro pelo exagero foi o Rei Midas, pois, atendendo a um pedido seu,
Dionísio fez com que tudo que ele tocasse virasse ouro, até comida, água e sua
filha. Pelo mesmo motivo, a pretensão de dominar o mundo com seu espírito
expansionista faz Atlanta afundar no oceano.
O autor lembra que Platão recomendava não exceder os limites, e pregava
o meio-termo para encontrar a harmonia, equilíbrio, simetria e ordem. Tudo era
analisado sob dois pontos de vista, como as moedas que tinham cara e coroa. Ver
dois lados é o caminho da moderação. Cosmos significa ordem, lei e beleza, e
cosméticos são artigos de beleza. “Somos humanos e emocionais, sendo difícil
praticar o meio termo. Como os extremos são excitantes, devemos nos afastar
para ter uma visão segura e um distanciamento crítico”, explica a palestrante.
“O exagero dá prazer e é preciso pagar por isso”. Apolíneo é o equilíbrio
entediante e Dionísio é o vinho, o descomprometimento e as emoções. Segundo
Karla Celene a aparente contradição entre excessos e contenção, não é paradoxal
e sim uma complementação.
O quarto pilar é o Autoconhecimento. Quando prosseguir e quando parar?
Conhecendo nossas limitações, haverá menor chance de erro. Mais importante do
que saber quem somos, é imaginar quem poderemos ser. Somos uma obra em
construção. Na entrada do Templo de Apolo há a frase: “Conhece-te a ti mesmo”.
A Pitonisa previa o futuro em Delfos, porém o oráculo não causa o futuro, e, de
acordo com o autor, o resultado da equação caráter e circunstância forma o
destino. A metade do destino depende do caráter da pessoa. O amanhã depende do
que fazemos hoje, assim, conhecer a nós mesmos acaba por construir nosso
destino. Este não é imposto de fora, mas emana de nós. Quem é o homem mais
afortunado? Apenas na morte, quando tudo já foi feito, poderá ser avaliada a
fortuna de cada um. Está vivo? Então poderá ser modificado.
“Racionalismo é o próximo pilar”, continua Karla Celene. “É a capacidade
de solucionar problemas, é o resultado da ação do cérebro”. A deusa Atena é
cerebral, e simbolizada pelo galho de oliveira. O azeite que vem dela é luz,
alimento e limpeza. Penélope, para fugir dos pretendentes, tecia a própria
mortalha durante o dia e a desmanchava à noite, e assim ganhava tempo, até que
seu marido, dado como morto voltasse para casa. O fio de lã usado por Ariadne
para sair do labirinto é outro exemplo de como resolver assuntos racionais. No
geral, os personagens usam a emoção desvairada. Aquiles, o herói da Ilíada
sofre mortais consequências quando se utiliza de muita emoção. Agamenon
toma a amante de Aquiles, enquanto Pátroclo usa a armadura de seu amigo,
naquele momento fora de combate, mas ele não é Aquiles e acaba morrendo. Por
sua vez, Medeia ajudou Jasão a encontrar o velocino de ouro, porém, quando
abandonada por ele mata os filhos e depois a noiva do ex-marido com um vestido
envenenado.
Segundo Karla Celene, para que a civilização florescesse foi preciso que
a razão a guiasse. Mas como controlar as emoções? O lado emocional se forma
antes do intelecto. A vida é um cabo de guerra entre lógica e emoção. Os
pilares se juntam.
A Curiosidade Incansável é o sexto pilar, que abre os caminhos que nos
levam aonde queremos chegar. Segundo o autor, as coisas são o que são, e não o
que parecem ser. Devemos explorar todas as dimensões da realidade, fazer
perguntas corajosas sobre nós mesmos e nosso mundo, mas sempre aliadas à ação,
colocando as respostas em prática. Atena, como deusa, sabia de tudo, mas mandou
Telêmaco procurar o pai. Só há sentido na vida, quando procuramos o caminho.
“Na psicanálise, o psicoterapeuta descobre o problema, mas a resolução depende
da busca e encontro da verdade pelo próprio psicanalisado. A cura é a busca”,
diz a palestrante. Psique é salva por um príncipe, mas, caso visse seu rosto,
ele desapareceria para sempre. Amam-se no escuro, e um dia ela acende uma
lamparina, vê sua beleza, mas uma gota de azeite quente cai no rosto dele
acordando-o, e fazendo-o sumir. O livro diz que é a sabedoria que nos instiga.
Os filósofos gregos tinham sede e fome de conhecimento, sendo dever moral
buscar a verdade, porque ser humano não é calar-se.
O mundo grego era cheio de imperfeições, e continuamos da mesma maneira,
imersos num capitalismo feroz. Somos cidadãos e consumidores, e a vida é
diferente do que gostaríamos que fosse. Por que acontecem coisas ruins com
pessoas boas, e outras sem ética saem bem na vida? Temos de procurar as
respostas, e a liberdade é indispensável para podermos fazer as perguntas.
O sétimo pilar é o Amor a Liberdade. Aqui, Karla Celene se mostra
inteira, e vemos boa parte dela nessa fala, mas garante ser do autor: “tão
necessária quanto o ar que respiramos, a liberdade deixa o humanismo prosperar.
Para não ser perigosa, ela precisa se juntar ao autocontrole e à
responsabilidade. Ser livre é ser independente para fazer tudo ou não fazer nada.
Entra aí o livre-arbítrio, pois escolhemos a vida que vamos levar”. E diz que
“é preciso lutar pela liberdade, que não é obtida automaticamente. É preciso
brigar por ela, para nos libertar de nós mesmos, nosso grande opressor”. Devemos
evitar nos prender em traumas do passado para nos libertar das amarras e sermos
livres. Conforme o autor, não alimentar mágoas e rancor ao longo da vida é bom
para nos livrarmos de nós mesmos. É preciso voltar ao passado para conseguir
abrir as portas da prisão, por mais doloroso que seja voltar. A libertação pode
vir quando se revê e se reconcilia com o passado.
O último pilar é o Individualismo. Cada pessoa é um ser único, então,
cada um faça de si uma boa pessoa. Isso também será bom para os que nos cercam.
Tenhamos orgulho da nossa singularidade e capacidade de produzir grandes
feitos. Conseguindo ou não, não devemos desistir. Para isso precisamos triunfar
sobre os medos, e nos orgulhar de sermos únicos. Ainda assim somos limitados e
precisamos dos demais. Jasão e seus argonautas disseram: “navegar é preciso,
viver não é preciso”, ou seja, “preciso” sendo necessário no primeiro caso e
“preciso” sendo exato no segundo. É bom termos o outro para fazermos bem a
nossa viagem. Narciso não deveria ver a sua bela imagem, senão se encantaria.
Quando se viu no espelho d’água ficou paralisado até morrer. O narcisismo ou
individualismo exacerbado leva o indivíduo à perdição.
É a memória que nos faz humanos, únicos e individuais, e o esquecimento
nos faz perder a individualidade, a não ter identidade. Por piores que sejam as
nossas lembranças, sem elas não somos nós, garante Stephen Bertman. Hoje, a
sociedade tecnológica tem uma velocidade estonteante. Em princípio, o que é
velho é inútil, mas temos de entender o contrário. Somos amassados pelo excesso
de informação, mas devemos interromper a máquina acelerada. Isso não é
sabedoria, que está sim, naquilo que o tempo consagrou com a força da tradição.
É um erro nos deixar robotizar. A solução, para o autor, é substituir bens pelo
calor humano.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade”
Nenhum comentário:
Postar um comentário