400 milhões de libras
* Por
Marcelo Sguassábia
Tomo a palavra nesta tribuna para, em nome da nossa comissão, me
manifestar a respeito da confecção das cartilhas com o alfabeto Libras - Língua
Brasileira de Sinais, popularmente conhecido como alfabeto do surdo-mudo.
Temos hoje no país aproximadamente 2 milhões de indivíduos com
deficiência auditiva severa, que não querem e não merecem ser tratados como
gente de segunda categoria. Por sua vez, os esforços de inclusão social
empreendidos pelo governo vêm privilegiando sobretudo as pessoas com
necessidades especiais, merecedoras do nosso respeito e do inalienável direito
à cidadania.
Isto posto, decidimos inovar, produzindo algo diferente do costumeiro
abecedário dos surdos impressos em grafiquetas de esquina e com aquelas
mãozinhas horríveis uma ao lado da outra, mostrando letra por letra. Queríamos
algo que de fato prestigiasse a notável e pujante categoria dos surdos, que
numericamente justificaria inclusive uma bancada que os representasse no
Congresso.
Assim, um lote de cartilhas foi confeccionado com fotos de Sebastian
Salgado e Bob Wulfenson, tendo os sinais das mãos executados por celebridades e
socialites de todos os Estados brasileiros. O outro lote deixamos a cargo do
renomado artista plástico Romero Brites, que aceitou a encomenda e criou para
cada sinal um quadro exclusivo, empreitada que lhe tomou mais de um ano de
trabalho. Em ambos os casos, o resultado foi maravilhoso. E a satisfação que
tivemos depois de tudo pronto foi muito maior que a nossa amargura pelas
caluniosas suspeitas de superfaturamento que pairam sobre a nossa comissão.
Fomos duramente questionados pelo fato de imprimirmos 400 milhões de
cartilhas. Entendemos que não há exagero nessa quantidade, uma vez que os
deficientes auditivos já conhecem o alfabeto Libras e, consequentemente, os
livrinhos não se destinariam a eles, e sim à população em geral - que
desconhece a linguagem e que precisa dela para se comunicar com os surdos.
Se fôssemos seguir a lógica de alguns parlamentares da oposição, que
entendem que as cartilhas com o Código Libras deveria ser distribuída apenas
entre os surdos, evidentemente que 400 milhões seria uma tiragem absurda, já
que cada surdo receberia 200 cartilhas, num verdadeiro atentado aos cofres
públicos.
Mas o nosso raciocínio foi muito mais abrangente e democrático.
Arredondando a população brasileira para um total de 200 milhões de habitantes,
e sendo conveniente que cada cidadão receba dois exemplares (um para ter sempre
à mão e outro para deixar em casa, na eventualidade de algum extravio),
chegamos ao número de 400 milhões. Justo e sem desperdício.
Desse montante, alguns poucos milhares de cópias serão separadas para
envio a organismos internacionais e embaixadas de países com os quais mantemos
relações diplomáticas. Assim mostraremos ao mundo a sensibilidade do governo
federal em relação ao problema e os vultosos investimentos que destinamos para
minimizá-lo.
A próxima etapa, ainda em fase de licitação de fornecedores, consiste em
exibir o alfabeto Libras na forma de animações 3D, em gigantescos painéis de
LED afixados nas praças públicas e estações de metrô. Dessa maneira poderemos
disseminar, em outras e ainda mais atraentes mídias, esse importante
instrumento de integração genuinamente brasileiro.
* Marcelo
Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Uma má ideia e um belo discurso transformador podem impedir os perdulários do dinheiro público de ir para a cadeia. Cabe a nós não deixar acontecer.
ResponderExcluirHoje que vi o grande lance do trocadilho do título. Mais uma vez parabéns pela criatividade, Marcelo! Coisas de publicitário: atira em uma mosca e atinge 400 mil.
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