A manutenção do rosa
* Por Daniel Santos
O
garoto tinha de tudo, mas sempre pedia mais. Gostava, sim, que o atendessem a tempo e a hora, mas nem lhe
passava pela cabeça que tal satisfação resultava do empenho de tanta e tanta
gente a ele dedicada.
Quando
criança, quase tomou consciência de tudo, ao despertar de madrugada com a
movimentação dos mais velhos pela casa, mas convenceram-no a voltar para a
cama, que ainda não era hora de saber.
Assim,
peralta e folgazão, entendia como natural pode escolher comida no almoço e no
jantar, fora o café da manhã com leite, sucrilhos e toda sorte de doces, além
de eventuais guloseimas na lanchonete da escola.
Tudo
do bom e do melhor. Água farta na pia, água morna no chuveiro, roupas da moda
sempre passadas e perfumadas, aulas de recuperação, patins, sorvete de morango
e férias na Disneylândia.
Mas
chegou a noite da revelação. Ele entrava na adolescência e despertou com ruídos
na casa. Levantou-se e flagrou a família às voltas com lixas, brochas,
martelos, pregos e muitos galões de tinta ... rosa.
Todos,
mesmo os avós, trabalhavam duro: recuperavam móveis, reabasteciam a despensa,
lavavam, trocavam as flores do jarro, faziam o asseio do “poodle” e cuidavam e
cuidavam para tudo se tornar cor-de-rosa.
De
fato, logo a água, o cachorro, as cortinas ... tudo se tornava rosa. Fazia-se a
manutenção do bem-estar que, de dia, usufruíam – o garoto entendeu, afinal. E logo se juntou à turma
que toca a vida para a frente.
* Jornalista carioca.
Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São
Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de
"O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995,
Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002,
Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca
Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Sem o trabalho alheio pouco ou nada podemos.
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