segunda-feira, 4 de março de 2013


A manutenção do rosa

* Por Daniel Santos

O garoto tinha de tudo, mas sempre pedia mais. Gostava, sim, que o  atendessem a tempo e a hora, mas nem lhe passava pela cabeça que tal satisfação resultava do empenho de tanta e tanta gente a ele dedicada.

Quando criança, quase tomou consciência de tudo, ao despertar de madrugada com a movimentação dos mais velhos pela casa, mas convenceram-no a voltar para a cama, que ainda não era hora de saber.

Assim, peralta e folgazão, entendia como natural pode escolher comida no almoço e no jantar, fora o café da manhã com leite, sucrilhos e toda sorte de doces, além de eventuais guloseimas na lanchonete da escola.

Tudo do bom e do melhor. Água farta na pia, água morna no chuveiro, roupas da moda sempre passadas e perfumadas, aulas de recuperação, patins, sorvete de morango e férias na Disneylândia.

Mas chegou a noite da revelação. Ele entrava na adolescência e despertou com ruídos na casa. Levantou-se e flagrou a família às voltas com lixas, brochas, martelos, pregos e muitos galões de tinta ... rosa.

Todos, mesmo os avós, trabalhavam duro: recuperavam móveis, reabasteciam a despensa, lavavam, trocavam as flores do jarro, faziam o asseio do “poodle” e cuidavam e cuidavam para tudo se tornar cor-de-rosa.

De fato, logo a água, o cachorro, as cortinas ... tudo se tornava rosa. Fazia-se a manutenção do bem-estar que, de dia, usufruíam – o garoto  entendeu, afinal. E logo se juntou à turma que toca a vida para a  frente.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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