sábado, 26 de janeiro de 2013

O amor é rapadura

* Por Fábio de Lima

Algumas frases são estranhas. Muitas delas parecem escritas para serem colocadas em pára-choque de caminhão. Mas, às vezes, acho que estranho mesmo é a vida. O mundo é muito estranho. Esse mundo que gira, gira e gira. São tantas as voltas. Tudo é estranho. E as pessoas envelhecem. Tudo envelhece até a morte nesse mundo. Nascemos para envelhecer e morrer. O resto não tem muita importância.

Eles se conheceram num baile para a melhor idade. Ela com 61 anos e ele com 63. Ambos viúvos e em busca de uma companhia. A vida não havia sido fácil para nenhum dos dois. Dona Regina deixara a Bahia com 16 anos. Dos anos 60 para cá sempre trabalhou muito. Como saiu analfabeta, do nordeste, e nunca estudou depois de chegar em São Paulo, achou na profissão de doméstica a melhor forma de ganhar seu sustento. Casou cedo, com 19 anos. Ficou viúva, também cedo, com 25 anos. Não quis casar de novo e criou, sozinha, um casal de filhos.

Seu Mário nasceu e se criou no ABC paulista. Filho de sapateiro resolveu, ainda criança, ser sapateiro, igual ao pai. Nunca foi muito de estudar e só estudou até a 4ª série. Com apenas 18 anos de idade percebeu que não gostava de ser sapateiro e virou metalúrgico. Casou quando tinha 23 anos. Progrediu na vida. Comprou uma casa, um carro, e teve uma vida tranqüila, acompanhado de sua esposa e de seus 5 filhos. Foi feliz até o começo dos anos 80.

Depois foi mandado embora da metalúrgica e não conseguiu trabalho em outra. Perdeu um filho atropelado. Perdeu a mulher, vítima de câncer. E perdeu, também, o encanto pela vida. Passou a beber muito. Vendeu tudo que tinha. Gastou todo o dinheiro que havia ganhado ao longo da vida e foi morar na rua, debaixo de viadutos. O tempo passou e a vida se arrastou – e o velho Mário pensou em desistir, mas teimoso perdurou.

Só que no dia 04 de julho de 1994, segundo marca o verso de uma foto 3x4, a vida desses dois brasileiros – iguais a tantos outros brasileiros – deu uma reviravolta. Aquele senhor alto, magro, de bigode aparado e branco – assim como seu cabelo – trombou com aquela senhora, também magra, de cabelos compridos e vestido florido. Eles estavam num baile para a melhor idade, no extremo da Zona Sul de São Paulo, e escutavam uma música, do Zezé Di Camargo e Luciano, chamada “É o amor”.

Dançaram juntos. Deram risadas. Tomaram ponche. Falaram sobre a vida e sobre os filhos. Concordaram estarem cansados e sozinhos. Comentaram as saudades dos tempos que eram jovens. Beijaram-se. Foram embora juntos. Namoraram e casaram na igreja. Viveram juntos e felizes nos últimos 12 anos. Dançaram em muitos outros bailes. Fizeram juras eternas de amor.

Era 30 de julho de 2006. Um domingo. Noite fria. O relógio da Avenida Ricardo Jafet, Zona Sul de São Paulo, marcava 23h17. Avistei um carro batido em um poste e muito sangue e vidro pelo chão. Perguntei ao vigia de um posto de gasolina, de frente ao local do acidente, o que, exatamente, havia ocorrido. E ele me disse que dois velhos haviam morrido na batida. Só isso, segundo o vigia.

Então, olhei, atentamente, aquele carro batido. Havia uma foto 3x4, de um casal de idosos, intacta, colada no volante do carro. Olhei novamente para o rosto do vigia que mascava chiclete e com a mão direita coçava a bunda. Pensei que o mundo é muito mais cruel que aparenta. Pensei também que aquele que tem a pessoa amada ao lado tem sorte. Nunca entendi a vida, nem a morte!

O amor é doce, mas não é mole não.

*Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Atua como repórter freelancer para o jornal Diário do Comércio (SP) e é diretor de programação da Cinetvnet (TV pela WEB). Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.

Um comentário:

  1. Mais surpreendente do que esse amor maduro é o fato de um homem sair das ruas e algum tempo depois voltar ao consumo, comprando um carro. A superação foi o ponto alto. A morte súbita aos 75 anos não foi de todo má. Ainda bem que viveram o amor e morreram juntos.

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