sábado, 7 de abril de 2012







O escritor que é a cara do seu time

* Por André Falavigna


Treze autores para treze clubes. Eu sei, parece absurdo e, talvez, realmente seja. Vai ser difícil ir até o final disto aqui sem cair no mais absurdo ridículo. É que quem me conhece já nem se importa mais. Eu caio no ridículo e ninguém nem dá bola. É gostoso pra caramba.

Tudo começou com uma idéia mais ou menos sem nexo que se resume mais ou menos assim: muito do que admiramos num determinado escritor tem a ver conosco, com nossa visão de mundo. Muito de nossa visão de mundo é forjada ao longo daquilo pelo o que nosso time nos obriga a passar. Não me peçam para desenvolver, sobretudo se você não gosta de futebol. Ou de ler. Só o que posso precisar é que se trata de identificação. Seu time faz coisas com você e você muda. Daí, passa a enxergar tudo de uma maneira diferente, inclusive seus livros prediletos. E é natural que a história de uma agremiação confira a ela certas características que a tornam única. Deve haver algum meio de relacionar esse caráter singular a um escritor específico, segundo o histórico e o estilo desse escritor. Não tem nada a ver com escolher um autor que torça por um time e, automaticamente, associá-lo a esse time. E muito menos com atender a um estereótipo besta. Não, Érico Veríssimo não será o escritor que é o Inter, e nem Jorge Amado (que, salvo engano, torcia inclusive pelo Ypiranga) ou João Ubaldo serão o Bahia. A coisa é pior ainda, eu prometo.

Vai ficar mais fácil na prática, conforme os exemplos forem sendo expostos. Por exemplo: o Corinthians. Um bom critério é evitar escritores contemporâneos ao futebol, e outro é escolher de preferência estrangeiros. Assim, a gente foge de vez do lugar comum. Não vai ser possível sempre, mas no caso do Corinthians dá. Pensei em Jean Genet, cleptomaníaco renitente, desequilibrado e presidiário assumido. Mas não dá, porque o camarada era um pederasta furioso e isso não combina com o Corinthians. Aliás, vocês sabem muito bem com quem combina, mas aí ficam faltando outros itens. Deixemos isso para mais tarde e cuidemos do Corinthians mesmo. Sai Jean Genet, entra Victor Hugo, autor de “Os Miseráveis”. Poucos foram tão capazes de empolgar descrevendo baderna, sociologia barata e violência gratuita. Fora que ele adorava ver um sujeito saindo da merda para ir diretamente à glória infinita. E era piegas a dar com pau. Mais Timão, impossível. Passional, exagerado, amante dos maltrapilhos e com fortes pendores proletários. Além do mais, ele era francês. Não devia ser muito chegado em banho. Taí. Ficou bom.

Do Corinthians, partamos para o Flamengo. O que vale para um, costuma valer para o outro, a exemplo do que ocorre entre Palmeiras e Vasco. Mas não vamos nos furtar em conseguir algo especialmente para o rubro-negro. Entretanto, teremos que dar uma nacionalizada no assunto. Enquanto estivermos no Rio, isso não vai ser nada de mais. Pensei em algo bem realista, que apelasse à exploração dos instintos mais primevos do ser humano. Algo que transmitisse um universo quase animal, além de francamente popular (se é que vocês me entendem). Bom, poucas idéias combinariam tanto com aquele espírito das massas miscigenadas e desvalidas do que o autor de “O Mulato”, Aluísio Azevedo. Há algo mais “Mengo” do que “O Cortiço”? Hein? Hein?

E o Fluminense? Aquilo é Borges puro. Vocês conseguem imaginar alguém mais elegante e cônscio da própria natureza aristocrática? Alguém mais capaz de desafiar o consenso em torno dos chavões soi disant progressistas? Alguém mais orgulhoso de ser elite, na acepção mais gostosa da palavra? Algo no mundo é mais pó de arroz que Jorge Luis Borges? Impossível.

No mesmo sentido, aceitei uma sugestão de meu irmão para o Botafogo. Dêem uma rápida deitada de olhos neste resumo da biografia do catarinense Cruz e Souza: para começo de conversa, nasceu num lugar chamado Desterro e era filho de escravos. Só que Cruz e Souza deu sorte e foi adotado por um Marechal (Guilherme, não Hermes, engraçadinhos). Quando estava estudando na melhor escola da região e tudo parecia ir bem, os pais adotivos morreram e ele se viu obrigado a abandonar os estudos para trabalhar. Mesmo assim, obteve uma posição de promotor público, o que lhe garantiria, de certa forma, algum futuro. Mas acontece que não lhe deixaram assumir o cargo porque, como vocês talvez se lembrem, ele era negro. O consolo é que se mudou para o Rio e lá conseguiu certo nome escrevendo, se bem que os ganhos dessem só para o gasto. Tudo ia razoavelmente nos trilhos, ele até se casou; mas então sobrevieram outros probleminhas: dos quatro filhos que teve com sua esposa Gavita, também negra, dois morreram; a pobre mulher despirocou completamente e teve que ser internada várias vezes em diversas instituições. E, como havia coisas que só aconteciam a Cruz e Souza, ele contraiu tuberculose e morreu pobre, aos 36 anos. Afora tudo isso, o sujeito era simbolista. Vocês sabem como os simbolistas gostavam de um bom símbolo. Se ele não serve para Botafogo, não sei quem pode servir.

Do Rio, só restou o Vasco. Precisamos de alguém dado a apegar-se a tradições e, ao mesmo tempo, um tantinho prepotente e orgulhoso por conta da capacidade de reunir e utilizar, de preferência ostensiva e arbitrariamente, boa quantidade de poder. Não pode ser alguém muito conformado e deve possuir espírito aventureiro. Além do mais, deve escrever sob qualquer estilo, desde que seja do tipo que se empolgue facilmente ao menor sinal de que teremos oportunidade de nos tornarmos heróis. Eu sei, a tentação por Camões é grande, mas ficaremos com Herman Melville que, ademais, foi marinheiro. Aquela fixação no certo e no errado, em Deus e no abismo, nos extremos e no impossível: aquilo é o Vasco. E há, ainda, o mar e a caça ao Leviatã. O capitão Ahab dava um belo Eurico Miranda. E não me venham com a história da Baleia, e do Santos. O Santos é outra coisa.

O Santos é Gabriel Garcia Marques. Indubitavelmente consagrado, é famoso pelo estilo fantasioso, pela atmosfera encantada de seus romances. Além do mais, é o escritor preferido de muita gente que tem uma visão romântica da vida e, também, um dos mais recomendados para a introdução ao hábito da leitura. E quem cresceu vendo o Santos de Pelé viciou-se em futebol. As coisas que acontecem ao Santos só poderiam ser normais em Macondo. Na Terra, a gente quase não acredita. Mas aconteceram e, coisa louca, ainda acontecem. O Santos é puro realismo fantástico.

O Palmeiras fica, realmente, naquela linha do Vasco. Mas há que se incluir aí cores mais melodramáticas, certa vocação para a lamúria e muita mesquinhez recôndita. Dante Alighieri seria quase perfeito: fofoqueiro, maledicente, escandaloso, obcecado pelo juízo final de tudo e de todos, deslumbrado por uma boa tradição e, por último mas não somente, genial. Mas falta ali qualquer coisa de Honra, e sobretudo de Glória. Falta a noção do valor das coisas remotas e a nostalgia do junho de nossas vidas, da idade do ouro, da queda, do “Coração das Trevas”. O Palmeiras é Joseph Conrad, e é como o navio Judéia, de “Juventude”: fazer ou morrer. Não há meio termo. Por que vocês acham que o palmeirense adora Edmundo?

Tem mais um que é fácil. O Atlético Mineiro. Nada é mais previsível no Brasil. Desde que eu me conheço por gente, o Atlético Mineiro sempre chega às semifinais dos Brasileirões (antes dos pontos corridos) e nunca os ganha. Ganhou em 71, é verdade, e a partir daí deu-se por satisfeito. De resto, tirante aquela passagem rápida pelo inferno, parece satisfazer-se sacaneando o Cruzeiro aqui e fazendo bom papel acolá. Se tudo sair bonitinho e respeitável, estamos todos de acordo. E o incrível é que eles não gostam de nada disso se não for para fazer grande estardalhaço, como se fosse para salvar o pai e a mãe da forca. Quando tudo acaba, os dois morrem mesmo, mas fica muito bonito de se ver. Isso é um novelão gostoso, e eu já vi o final. Trata-se de Dickens. E, na noite de natal, chegam sempre uma boa colocação e uma campanha desinteressada, entremeada de belas demonstrações de amor e desprendimento.

O Cruzeiro não fica muito atrás, mas é menos popular. Dane-se o tamanho da torcida: o Cruzeiro pode ser tudo, menos a alegria do povo. Elaborado, preciso, às vezes insosso e insuspeitadamente profundo, tudo no Cruzeiro parece sempre regular, acadêmico e chato. Não é que é ruim, pelo contrário: é imprescindível. Mas haja saco. Flaubert. Não se ofendam. Eu gosto de ambos. Mas é só porque eu sou meio chato também.

O Grêmio, ah, o Grêmio. Recuso-me a relacionar Grêmio ou Inter a qualquer autor sulista. Isso contrariaria o espírito da crônica. A tentação de Lupicínio Rodrigues deve ser afastada, assim como a de Érico o foi. Partiremos para um capa e espada aqui? Eu adoro capa e espada. Fico até indeciso. Dumas, “Os Três Mosqueteiros”? Óbvio demais. “Escaramuche”? Ninguém se lembra de Rafael Sabatini. Isso anda difícil. Fosse só pela “Revolução de Bicicletas”, talvez ficássemos com Giardinelli. Mas, depois daquilo que aconteceu contra o Náutico, vocês hão de convir que precisaremos de alguém dramático, corajoso, denso, propenso a heroísmos e dado a violências. E não pode ser chegado a muita conversa. Hemingway. Com o Grêmio. Até a pé. Para o que der e vier. Onde ele estiver.

E, para o Inter, dificultamos tudo. O Grêmio teve aquela pioneira torcida gay, é um time fino e precisaremos de algo menos delicado e mais populacho para o Inter. Algo mais cru, digamos assim. Algo como... Norman Mailer. Sim, alguém acostumado a descrever homens duros, aqueles tipos antigos que já não existem mais e que bebem como porcos, brigam bem e são sempre capazes de atos nobres, apesar de nunca pararem num emprego. Alguém que cuspa fumo na rua e, ainda assim, possua o charme e a classe das coisas antigas. Alguém que não se limpe direito. Alguém como... Norman Mailer. Além de tudo, ele é meio comunistão e, lá no sul, isso pega bem.

O Bahia vai ficar para Mark Twain, ou Samuel Langhorne Clemens, como queiram. Escritor irresponsável, leve, bom de ler, criativo, quase lúdico e de que toda pessoa decente gosta. O camarada não dispensava um trago, e, segundo Faulkner, é o primeiro escritor verdadeiramente americano. A Bahia sempre foi bom lugar para se começar qualquer coisa. Além do mais, o velho Clemens era chegado dos negrões no Missouri. Se conseguiu isso lá, na Bahia estaria em casa. Podem acreditar.

A comissão de arbitragem ficaria por conta de Dostoievski. Somente um mestre nas nuances da psicologia humana como ele poderia decifrar o que se passa na cabeça de Wilson de Souza Mendonça, ou mesmo na dos cronistas que varam a madrugada para defendê-lo. E não, não me esqueci de ninguém.

Para o São Paulo Futebol Clube (a imprensa aqui de São Paulo não admite que chamemos tal agremiação somente por seu prenome) as opções são muitas, mas a escolha certa uma só. Sugiro um autor refinado, cheio de sentidos duplos, todavia meio superficial, irônico, culto e pedófilo. E, sobretudo, alguém que se possa ler de uma sentada só, se é que vocês me entendem. Alguém como Oscar Wilde. Afinal de contas, o que é o São Paulo Futebol Clube, se não o amor que nossa imprensa esportiva nutre, mas cujo nome não ousa dizer?

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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