Despertar
* Por Pedro J. Bondaczuk
Wim der Keuken acordou, naquela manhã gélida, nevoenta e chuvosa de 25 de dezembro de 1982, sombrio e mal-humorado, como o dia lá fora. O céu estava cinzento, mas ainda não nevava. Os termômetros baixaram bruscamente desde a véspera e a previsão da meteorologia era de fortes nevascas para as próximas horas.
Embora ostentasse a honrosa condição de “Sinterklaas” de Rotterdam, cobiçada por tantos nessa cosmopolita cidade holandesa, o ancião, de 75 anos, de vivos, inquietos e sagazes olhos azuis, 1,85 m de altura, pele bronzeada, curtida pelo vento e pela salinidade marinha, iria passar outro Natal sozinho, sem poder compartilhar, com quem quer que fosse, lembranças, alegrias e decepções, como gostaria de fazer.
Detestava a solidão, principalmente em ocasiões festivas, como esta. Faltavam-lhe, sobretudo, “ouvidos” para suas histórias saborosas e picantes, que sabia narrar tão bem. Wim era um tagarela incorrigível. Bastava que alguém lhe desse ouvidos, não importava quem, para contar, sem nenhuma cerimônia, casos e mais casos – a maioria, provavelmente, inventada – dos seus tempos no mar, dos seus amores, brigas e aventuras, de quando era marinheiro e singrava os sete mares. Gastava horas nesse exercício. Tinha um talento muito especial de prender a atenção alheia.
A despeito dos anos haverem curvado o seu porte atlético, viril e orgulhoso, Wim aparentava força e energia incomuns para a idade. Conservava, ainda, nítidos, os belos traços que o tornaram tão popular com as mulheres na juventude, bem como o vigor daqueles saudosos tempos no mar.
Seus cabelos, contudo, estavam completamente grisalhos, emendando com uma barba alva e sempre bem cuidada, lavada e penteada meticulosamente todos os dias, como se ambos fossem uma única peça, que formasse uma moldura a realçar os olhos claros, profundos e inteligentes. Eram, aliás, os únicos traços a denunciar a implacável passagem do tempo. No mais...
O velho orgulhava-se da boa saúde. Tanto Wim, quanto os que o conheciam há décadas, não se lembravam de nenhuma ocasião em que tivesse ficado doente, ou mesmo se queixado da mais leve indisposição. Nem mesmo aqueles problemas comuns a todos, que afetam praticamente toda a população, notadamente nas épocas de mudança de estação, como gripes e resfriados, haviam se manifestado.
A julgar pela aparência, ele tinha, ainda, muitos anos de vida pela frente. Era muito provável até que chegasse à idade centenária, como o bisavô. Comia de tudo, embora seu apetite fosse, via de regra, frugal. Às vezes se excedia, mas sem nenhuma conseqüência, pelo menos aparente, para a saúde.
Diante de uma garrafa de gim, ou de qualquer outra bebida forte, seria temeridade enfrentá-lo, ou sequer acompanhá-lo. Quem se dispusesse a tentar a proeza, certamente se daria mal. Teria que ser carregado para casa, ou quem sabe levado a um hospital em coma alcoólica, enquanto o velho sairia, seguramente, andando sobre os próprios pés, sem o mínimo sinal de embriaguez. Agiria como se os vários litros de álcool emborcados, capazes de afogar qualquer mortal, não passassem de água mineral!
Foram tantos os Natais que passara sozinho, a remoer lembranças de amores passados, da família, dos companheiros de aventuras e dos amigos, a maioria já morta, que já nem se lembrava quantos... Quinze? Vinte? Vinte e cinco? Não saberia dizer! E nem importava!
Desde a morte repentina da esposa, em 1961, vivia só, nesse sombrio casarão de dois andares, nos arredores da cidade, onde, na verdade, passava quase o tempo todo em seu quarto simples e despojado de viúvo, de frente para a rua, no pavimento superior. O cômodo, via de regra empoeirado, era austero e simples, como o dono.
Tinha pouca mobília. Os móveis restringiam-se a uma velha e estreita cama de solteiro, quase sempre desarrumada, um amplo guarda-roupa de mogno, relíquia dos bons tempos de prosperidade e uma sólida e comprida mesa, que fazia as vezes de escrivaninha, acompanhada de uma larga cadeira de braços, forte o suficiente para suportar o peso de alguém com o dobro do seu tamanho.
Tinha, por eventual companhia, apenas um gato angorá malhado de estimação, com pêlo dourado e branco, chamado Lidi (embora fosse macho), que por sinal nem era lá muito fiel. Vivia mais fora de casa, esgueirando-se por muros e telhados da vizinhança, à procura de companheiras, ausentando-se, não raro, por semanas a fio, principalmente nas épocas de acasalamento. Tinha prole numerosa, que não parava de crescer. A maioria dos gatos da vizinhança compunha a sua descendência.
Dos filhos, há tempos não tinha qualquer notícia. Não sabia onde moravam, se estavam ou não casados, o que faziam, nada. Nem tinha certeza de que ainda estivessem vivos.
Nota: Do romance (inédito) “O Sinterklaas de Rotterdam”.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
* Por Pedro J. Bondaczuk
Wim der Keuken acordou, naquela manhã gélida, nevoenta e chuvosa de 25 de dezembro de 1982, sombrio e mal-humorado, como o dia lá fora. O céu estava cinzento, mas ainda não nevava. Os termômetros baixaram bruscamente desde a véspera e a previsão da meteorologia era de fortes nevascas para as próximas horas.
Embora ostentasse a honrosa condição de “Sinterklaas” de Rotterdam, cobiçada por tantos nessa cosmopolita cidade holandesa, o ancião, de 75 anos, de vivos, inquietos e sagazes olhos azuis, 1,85 m de altura, pele bronzeada, curtida pelo vento e pela salinidade marinha, iria passar outro Natal sozinho, sem poder compartilhar, com quem quer que fosse, lembranças, alegrias e decepções, como gostaria de fazer.
Detestava a solidão, principalmente em ocasiões festivas, como esta. Faltavam-lhe, sobretudo, “ouvidos” para suas histórias saborosas e picantes, que sabia narrar tão bem. Wim era um tagarela incorrigível. Bastava que alguém lhe desse ouvidos, não importava quem, para contar, sem nenhuma cerimônia, casos e mais casos – a maioria, provavelmente, inventada – dos seus tempos no mar, dos seus amores, brigas e aventuras, de quando era marinheiro e singrava os sete mares. Gastava horas nesse exercício. Tinha um talento muito especial de prender a atenção alheia.
A despeito dos anos haverem curvado o seu porte atlético, viril e orgulhoso, Wim aparentava força e energia incomuns para a idade. Conservava, ainda, nítidos, os belos traços que o tornaram tão popular com as mulheres na juventude, bem como o vigor daqueles saudosos tempos no mar.
Seus cabelos, contudo, estavam completamente grisalhos, emendando com uma barba alva e sempre bem cuidada, lavada e penteada meticulosamente todos os dias, como se ambos fossem uma única peça, que formasse uma moldura a realçar os olhos claros, profundos e inteligentes. Eram, aliás, os únicos traços a denunciar a implacável passagem do tempo. No mais...
O velho orgulhava-se da boa saúde. Tanto Wim, quanto os que o conheciam há décadas, não se lembravam de nenhuma ocasião em que tivesse ficado doente, ou mesmo se queixado da mais leve indisposição. Nem mesmo aqueles problemas comuns a todos, que afetam praticamente toda a população, notadamente nas épocas de mudança de estação, como gripes e resfriados, haviam se manifestado.
A julgar pela aparência, ele tinha, ainda, muitos anos de vida pela frente. Era muito provável até que chegasse à idade centenária, como o bisavô. Comia de tudo, embora seu apetite fosse, via de regra, frugal. Às vezes se excedia, mas sem nenhuma conseqüência, pelo menos aparente, para a saúde.
Diante de uma garrafa de gim, ou de qualquer outra bebida forte, seria temeridade enfrentá-lo, ou sequer acompanhá-lo. Quem se dispusesse a tentar a proeza, certamente se daria mal. Teria que ser carregado para casa, ou quem sabe levado a um hospital em coma alcoólica, enquanto o velho sairia, seguramente, andando sobre os próprios pés, sem o mínimo sinal de embriaguez. Agiria como se os vários litros de álcool emborcados, capazes de afogar qualquer mortal, não passassem de água mineral!
Foram tantos os Natais que passara sozinho, a remoer lembranças de amores passados, da família, dos companheiros de aventuras e dos amigos, a maioria já morta, que já nem se lembrava quantos... Quinze? Vinte? Vinte e cinco? Não saberia dizer! E nem importava!
Desde a morte repentina da esposa, em 1961, vivia só, nesse sombrio casarão de dois andares, nos arredores da cidade, onde, na verdade, passava quase o tempo todo em seu quarto simples e despojado de viúvo, de frente para a rua, no pavimento superior. O cômodo, via de regra empoeirado, era austero e simples, como o dono.
Tinha pouca mobília. Os móveis restringiam-se a uma velha e estreita cama de solteiro, quase sempre desarrumada, um amplo guarda-roupa de mogno, relíquia dos bons tempos de prosperidade e uma sólida e comprida mesa, que fazia as vezes de escrivaninha, acompanhada de uma larga cadeira de braços, forte o suficiente para suportar o peso de alguém com o dobro do seu tamanho.
Tinha, por eventual companhia, apenas um gato angorá malhado de estimação, com pêlo dourado e branco, chamado Lidi (embora fosse macho), que por sinal nem era lá muito fiel. Vivia mais fora de casa, esgueirando-se por muros e telhados da vizinhança, à procura de companheiras, ausentando-se, não raro, por semanas a fio, principalmente nas épocas de acasalamento. Tinha prole numerosa, que não parava de crescer. A maioria dos gatos da vizinhança compunha a sua descendência.
Dos filhos, há tempos não tinha qualquer notícia. Não sabia onde moravam, se estavam ou não casados, o que faziam, nada. Nem tinha certeza de que ainda estivessem vivos.
Nota: Do romance (inédito) “O Sinterklaas de Rotterdam”.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Curiosa uma história em Português de um personagem holandês. Sempre usei a palavra coma como masculina e vi que também pode ser usada no feminino. Diabetes e personagem também são palavras assim. A história de Wim revelou-se melancólica. A continuar com tanta bebedeira, arrisca-se a não seguir o bisavô e morrer bem mais cedo.
ResponderExcluir