terça-feira, 2 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Plenitude e exatidão

Coluna Entrevista – Fernando Yanmar Narciso.

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, conto “A visita”.

Coluna Imitação da vida – Laís de Castro, crônica “Recordações de uma final de festival”.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “A vida sem manual”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Propagação”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Plenitude e exatidão

Prezados leitores, boa tarde.
O que é mais importante para as pessoas, para que se comuniquem com correção e objetividade e se façam entendidas no que gostem e desgostem, sintam e pensem, queiram e sonhem: a leitura, a correta expressão oral ou a escrita? Obviamente que o ideal seria contar com as três habilidades simultaneamente. Isso é o que, de uma forma ou de outra, consciente ou inconsciente, todos buscamos vida afora.
Todavia, se você tivesse que escolher uma dessas aptidões, uma única, qual delas escolheria? Optaria por ler com plena capacidade de entendimento, mesmo que os textos que lesse fossem confusos, cifrados ou eruditos demais? Escolheria a exposição oral, que tem a vantagem das expressões faciais, do timbre de voz, do brilho nos olhos, do sorriso tranqüilizador etc. como elementos sobressalentes da comunicação? Ou optaria por escrever com correção, criatividade, clareza e objetividade? Eu optaria (embora seja suspeito para opinar a respeito), pela última alternativa.
E o por quê dessa escolha? Porque pressuporia ter o domínio das outras duas habilidades, automaticamente. Para escrever com correção e conteúdo, eu teria que ser, no mínimo, bom leitor. A prática comprovou-me que só escreve bem quem lê bastante, com assiduidade e concentração, desde os gibis aos clássicos.
Ademais, se sou capaz de expressar-me com clareza e exatidão por escrito, muito mais fácil será, para mim, fazê-lo oralmente. A aptidão de escrever, portanto, é muito importante não apenas para o profissional do texto (para este, é crucial), mas para todo e qualquer indivíduo.
Muita gente não se preocupa com isso. Conheço profissionais ultra-preparados tecnicamente em suas atividades, com vários diplomas de graduação, pós-graduação e doutorado, que têm dificuldades de escrever um reles bilhete para a esposa (ou para a empregada) sem deixar dúvidas quanto ao recado que pretendia passar. A todo o momento, topo com textos em que o autor tem o que dizer, mas não sabe como fazê-lo e se enrola todo, não raro vomitando uma erudição que de fato nem mesmo tem. É importante escrever bem. Dá segurança, confiança e credibilidade a quem sabe fazê-lo.
Reitero quantas vezes se fizer necessário que não desprezo as outras formas de comunicação (e nem seria imbecil de fazê-lo). Quem me acompanha há já bastante tempo em minhas atividades de comunicador sabe da minha obsessão pela leitura. A todo o momento, escrevo sobre a necessidade da disseminação, cada vez mais ampla e até universal, dessa indispensável prática.
Faço dos versos mágicos de Castro Alves, no poema “O livro e a América”, que dizem “ó bendito o que semeia/livros, livros à mancheia/e manda o povo pensar./E o livro, caindo na alma/é germe que faz a palma/é chuva que faz o mar”, uma espécie de mantra, um dístico, uma oração, um lema que tento seguir.
Saber ler, adquirir o gosto pela leitura e poder fazê-lo com constância e assiduidade, todos os dias, é, para mim, um dos direitos fundamentais do homem. Conscientizar o máximo de pessoas a esse respeito tornou-se-me missão de vida. Tenho orgulho, por exemplo, de ter contribuído para a alfabetização de uma dezena de indivíduos e esse é o maior feito que já consegui desde que me conheço por gente.
Por outro lado, a comunicação oral tem importância até histórica em minha trajetória profissional. Afinal, dei meus primeiros passos neste mundo fascinante das comunicações no rádio, como produtor e simultaneamente locutor. Sou conferencista, com mais de 400 palestras e conferências no currículo.
Sei do desafio que é o de prender a atenção de uma platéia, de algumas centenas de pessoas, fazendo com que todas entendam as mensagens que tenho para transmitir, sem ambigüidades ou dubiedades. Ademais, essa foi a primeira forma que Homo Sapiens desenvolveu para se comunicar com outros espécimes da sua espécie. Todas as outras brotaram, floresceram e frutificaram dessa fértil semente, gerando a frondosa árvore de todo conhecimento humano.
Mas a escrita... Que coisa engenhosa foi essa criação, à qual raramente damos o devido valor, mas sem a qual o homem, certamente, ainda seria fera rústica e bronca, habitando as cavernas primitivas e sem possibilidades de passar conhecimentos, descobertas e habilidades às gerações posteriores! Os mais geniais, tão logo morressem, levariam para o túmulo tudo o que houvessem aprendido, intuído, criado ou pensado. A escrita impede que isso ocorra e, dessa forma, impulsiona o progresso e a civilização.
Poderia, no entanto, resumir todo esse meu bla-bla-blá em uma curta, objetiva e direta definição, como esta, feita pelo filósofo Francis Bacon, que escreveu a propósito: “A leitura traz ao homem plenitude, o discurso segurança e a escrita exatidão”.. Viram? Simples, direto, claro e objetivo.
Já imaginaram se Bacon não soubesse escrever? Estaríamos privados dessa sua singela, porém ao mesmo tempo profunda constatação. Daí a minha opção irrevogável pela escrita (entre tantos outros e infindáveis motivos).

Boa leitura.

O Editor.




“Façam o que quiserem de suas vidas, mas façam com convicção e paixão”


Há alguns meses, recebi, por e-mail, determinado texto acompanhado de solicitação para que fizesse uma avaliação crítica a respeito. Até aí, nada demais. Recebo, diariamente, centenas deles, de todas as partes do País (e alguns, até, do Exterior que, sempre que tenho disponibilidade de tempo e disposição para traduzir, traduzo e publico no Literário). Aliás, nenhum colaborador espontâneo ainda ficou na mão em nosso espaço. As colaborações às vezes tardam em ser publicadas, dado o volume que recebo. Mas sempre acabam indo parar nas páginas do Literário. Todavia aquele texto específico tinha algo de muito especial. Além de estar bem redigido (diria excepcionalmente, no sentido de alta qualidade), tinha substância, espinha dorsal, conteúdo. Em princípio, pensei que seu autor fosse algum escritor veterano, tal a espontaneidade e correção da escrita. Qual não foi minha surpresa, porém, ao constatar que se tratava de um jovem, que ontem, por coincidência, completou 26 anos de idade (que inveja!). Fiquei empolgado. Até porque, tenho discutido amiúde com amigos escritores, todos passados dos sessenta, que vivem criticando os jovens, dizendo que não sabem escrever (e nem sequer se expressar adequadamente em conversas). Estava ali, porém, um moço que sabia o que dizia e se esmerava na forma de dizer. Comprovava, pois, minha tese de que os mais velhos perdem a objetividade ao analisar o que a rapaziada da nova geração escreve, por exclusivo e explícito preconceito. Ao contrário do que dizem, a moçada de hoje faz não só boa literatura, como, na verdade excelente. É verdade que há exceções. Mas todas as regras as têm. E não é o caso, óbvio, do nosso entrevistado de hoje. Após ler sua crônica, de imediato, comuniquei-me com ele, solicitando-lhe autorização para publicar seu texto (ele havia me pedido, apenas, mera avaliação). Na seqüência, nas semanas seguintes, o jovem escritor enviou-me mais quatro crônicas, cada uma melhor do que a outra. “Não vou ser bobo de deixar este talento escapar por entre os dedos. Vou propor-lhe uma coluna aqui no Literário”, pensei. E propus-lhe. E, para minha satisfação (e creio que dos nossos leitores), ele aceitou. E tem, de fato, encantado nossos freqüentadores habituais ou os que nos visitam esporadicamente, com sua escrita dinâmica, inteligente, moderna e, sobretudo, com absoluta empatia com os leitores. Este é, portanto, há já alguns meses, mais um expoente da nossa “ala jovem” (50% dos nossos colunistas o são). Certamente vocês já perceberam a quem me refiro. Trata-se de Fernando Narciso Silveira. Ou, como queiram, de Yanmar, forma como se identifica na internet. Conheçam, pois, mais um pouco desse talento que, tudo indica, tem um futuro dos mais promissores e brilhantes, ou como escritor, ou como autor de peças teatrais, ou como roteirista de cinema ou em todos esses campos simultaneamente. Da minha parte, não tenho dúvida alguma disso.

Literário – Trace um perfil resumido seu, destacando onde e quando nasceu, o que faz (além de literatura) e destaque as obras que já publicou (se já o fez, claro).

Fernando Narciso Silveira – Ok, meu nome é Fernando Narciso Silveira, nasci em Montes Claros, Minas Gerais, em 01/03/1984. No momento estou desempregado, mas planejo mudar logo essa situação... Mas só planejo (risos). Escrevo, mas ainda não publiquei nenhum livro.

L – Você tem algum livro novo com perspectivas de publicação? Se a resposta for afirmativa, qual? Há alguma previsão para seu lançamento? Se a resposta for negativa, explique a razão de ainda não ter produzido um livro.

FNS – Não, mas meu grande sonho é fazer algo que seja reconhecido em todo o país, principalmente por meio da televisão.

L – Há quanto tempo você é colunista do Literário? Está satisfeito com este espaço? O que você entende que deva melhorar? Por que?

FNS – Eu vinha escrevendo no meu blog já há algum tempo, e em janeiro deste ano Pedro Bondaczuk ofereceu a mim e a minha mãe colunas fixas e aceitamos. Estou muito satisfeito com esse espaço, mas às vezes dá aquele sentimento de que estamos numa batalha inútil, por causa da falta de comentários.

L – Trace um breve perfil das suas preferências, como, por exemplo, qual o gênero musical que gosta, que livros já leu, quais ainda pretende ler (dos que se lembra), qual seu filme preferido, enfim, do que você gosta (e do que detesta, claro) em termos de artes.

FNS – Eu sou um cara muito eclético, indo do assumidamente malfeito ao requintado. Apesar de adorar descobrir filmes de baixo orçamento e/ou de qualidade questionável, meus filmes favoritos até hoje são “Era uma vez no Oeste”, de Sergio Leone e “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick. Sempre assisto aos filmes que a revista Veja aprova, apesar de nem sempre eles acertarem no palpite. Quanto à TV, tenho assistido muito pouco. Gosto dos canais de notícias, super-heróis japoneses, programas cômicos escrachados, documentários no estilo “como isso é feito?”, desenhos animados e tenho voltado a me interessar por novelas. Assim como qualquer jovem brasileiro, eu não sou muito chegado em livros, mas adoro ler almanaques e as tirinhas do Garfield, e as histórias de suspense amalucadas de Dan Brown. Quanto à música, gosto de ouvir qualquer coisa, desde que não apareça na TV nem toque no rádio. Ouço muito rock, música clássica, MPB, blues, jazz, regionais, enfim, tudo. Desde que não sejam os cantores e grupos-modinha.

L – Você gosta de teatro? Por que?

FNS – Nunca fui ver nenhuma peça, mas tenho vontade de trabalhar em algo do gênero. Sou meio tímido pra atuar, mas sempre quis trabalhar como diretor.

L – Você já esteve no exterior? Onde? Se não esteve, para onde gostaria de viajar e por que?

FNS – Sempre tive vontade de ir para fora do país, mas acho que não conseguirei.

L – Você tem predileção por algum gênero literário? Qual? Por que?

FNS – Comédia, histórias de mistério e almanaques. Creio que o melhor livro que já li foi Ricardo III, de Shakespeare.

L – Qual dos seus amigos vive mais longe? Onde?

FNS – Todos eles. Só tenho amigos na internet, e cada um vive num canto do país.

L – Qual é, no seu entender, o pior sentimento do mundo? Por que? E qual é o melhor? Por que?

FNS - Ganância capitalista, pois apesar de manter as engrenagens do mundo girando, ela joga as pessoas umas contra as outras e prega que quanto mais você possui, maior sua felicidade. O oposto da ganância, a solidariedade, é o sentimento mais nobre do ser humano.

L – Se pudesse eleger um único escritor estrangeiro como o melhor de todos os tempos, quem você escolheria? E o brasileiro?

FNS – Eu não gosto de ser tiete de ninguém. Se der vontade de ler, eu leio.

L – O que você está produzindo atualmente?

FNS – Apenas material para o Literário e para meu decrépito blog.

L - Qual livro, ou quais livros, está lendo no momento?

FNS – Uma biografia de Janete Clair.

L – Fale de alguma pessoa que você considere exemplar. Por que?

FNS – Minha mãe, pois é guerreira, inteligente, compreensiva e continua fiel aos seus ideais, ao contrário da maioria das pessoas que ela costumava admirar.

L – Em quais localidades do País você já esteve e gostaria de voltar? Por que?

FNS – Eu conheço o Nordeste praticamente todo, além de Brasília, Goiânia, Caldas Novas, São Paulo e Espírito Santo. Belo Horizonte é meu xangri-lá, mas se eu pudesse escolher um lugar pra voltar antes de morrer, eu queria voltar à Chapada Diamantina.

L – Qual a sua maior decepção literária? E a maior alegria?

FNS – Não sei responder essa.

L – O que você acha que deveria ser feito para estimular a leitura no País?

FNS – Tarefa difícil... Talvez se colocasse um bife dentro dos livros...

L – Você tem algum apelido? Qual? Fica irritado quando o chamam assim?

FNS – Yanmar, que não é bem um apelido, é mais meu alter-ego na internet. Através dele eu posso dizer tudo o que não tenho peito pra dizer no mundo real. Pra se ter um apelido, primeiro a gente deve ter amigos, e não é meu caso. Se bem que já me chamaram de tanta coisa quando mais novo...

L – Fale um pouco dos seus planos imediatos. E quais são os de longo prazo?

FNS – Eu não gosto de planejar nada, prefiro aproveitar as oportunidades. Se passar um sanduíche voando na minha frente, eu como. Mas no momento vou me matricular na Casa dos Quadrinhos, uma escola de desenho em BH, e me preparar para iniciar o curso semestre que vem.

L – Há alguma pergunta que não foi feita e que você gostaria que houvesse sido? Qual?

FNS – Acho que foram feitas perguntas demais. Minha política é sempre ser breve e dizer só o necessário, sem chances para embromação.

L – Por favor, faça suas considerações finais, enviando sua mensagem pessoal aos participantes do Literário.

FNS – Não desprezem o ruim, pois sem ele não existiria o bom. Assim é o equilíbrio do mundo. Quem está no topo hoje, provavelmente precisou ralar muito os tornozelos na escada pra chegar até lá. Façam o que quiserem de suas vidas, mas façam com convicção e paixão.



A visita

* Por Risomar Fasanaro

Eu estava jogando futebol no campinho perto de casa, quando minha avó mandou me chamar porque logo mais meu pai e meu avô chegariam, e eu precisava me arrumar para o jantar. Entrei e fui direto tomar banho. Ainda faltava mais de uma hora para eles chegarem, não sei que implicância era aquela de me chamar quando eu estava no melhor do jogo.

Era uma tarde quente, sufocante. Minha mãe abanava minha avó com um leque, enquanto ela lia “Dom Casmurro”. Eu estava montando armas de guerra com o Lego, quando a empregada veio avisar que havia uma moça lá fora que queria falar com minha avó. Quem é? Ela perguntou, e a empregada disse que era uma moça morena clara, muito bonita. Disse se chamar Luísa.
-Não conheço ninguém com esse nome.
- Mas ela disse que precisa falar com a senhora, que é urgente.
-Mande-a entrar, então.

Quando entrou na sala, a moça fez um leve gesto como se quisesse voltar, como se algo a impelisse a entrar, e ela relutasse a obedecer.

Do ângulo em que eu me encontrava, meio deitado no chão, vi primeiro os sapatos. Os saltos estavam tão gastos que aparecia o interior da madeira por entre o couro que levantava uma pequena aba. Havia um pouco de barro seco preso aos saltos. Ela usava umas meias grossas, que hoje deduzo, deviam ser de algodão, bem ordinárias, diferentes das meias de nylon que minha mãe e minha avó usavam. Mas delineavam pernas muito bem torneadas.

Levantei a cabeça e vi que ela era bonita. Muito bonita. Mesmo eu sendo apenas um menino já entendia essas coisas, e nunca vira uma moça tão bonita naquelas redondezas. O vestido era de tecido simples, com estampas miúdas, escuro, mas justo o suficiente para se perceber que tinha um corpo perfeito. Morena, trazia os cabelos presos no alto da cabeça, o que lhe dava um ar altivo.

Nossos olhos se encontraram, e pude perceber que os seus eram grandes e escuros com cílios negros e espessos. Não sei se foram os olhos ou o jeito de olhar, mas aquele instante ficou gravado em mim para sempre.

Ela parou próximo à porta em silêncio e minha avó a chamou: aproxime-se.
-O que você deseja?

Provavelmente, minha avó vendo que a mulher tinha idade para ser sua filha, tratava-a por você. A moça deu alguns passos, parou diante de minha avó, apertava uma das mãos na outra, e com voz quase inaudível, disse:
-Queria falar com a senhora.
-Pois pode falar!
-É que é assunto particular...

Olhou para minha mãe, para minha madrinha, e era como se pedisse para ficar sozinha com minha avó. Vendo que ninguém arredava pé da sala, minha avó pediu que saíssemos. Fiz de conta que ninguém me pedira nada, que eu era apenas um menino, e poderia ficar ali. Mas minha avó me mandou ir para o quintal. Comecei a juntar as peças do Lego bem devagar, enquanto a mulher se aproximava muito de minha avó e falava quase que cochichando:
-...Tempo...queria...foi...

Não consegui ouvir mais nada, por mais que apurasse os ouvidos. Tive de ir para o quintal e não vi quando a moça saiu. Mas quando voltei à sala, meu pai e meu avô já tinham voltado do trabalho. E era como se todo o verão houvesse entrado naquela casa.

Naquela noite minha avó não se sentou à mesa do jantar. E nunca mais fez as refeições com a família.
A
mulher forte que ajudava a colher café, que fazia pão, fubá, que junto com Basinha, a cozinheira, preparava comida para vinte pessoas, de repente ficara frágil, triste, acabrunhada, e já não lia romances, nem fazia tricô.

A casa ficou por conta das empregadas. Basinha decidia o que iriam comer, que toalha se poria na mesa do jantar, que flores se deveria comprar para colocar nos vasos... Tudo.

A mulher falante que fora minha avó, se transformara em alguém monossilábico, pelos cantos do casarão. Às vezes eu tinha a impressão de que murmurava palavras sem nexo. Coisas que vinham de um outro mundo. O mundo que ela passara a habitar e que era só seu.

Começou a emagrecer e embora os médicos não diagnosticassem nenhuma doença, foi definhando, definhando, e morreu um ano depois daquela visita.

Na missa de sétimo dia de minha avó, voltei a ver aquela mulher. Foi na praça em frente à igreja, enquanto as pessoas se despediam, que eu a vi.

Estava com os cabelos soltos e um vestido estampado de cores vivas. Conversava com outra moça, ao lado da igreja, e pelo clima, deviam ser amigas. Quando passei, ela me olhou meio de lado. E reconheci o mesmo olhar que vira naquela tarde, o olhar que ainda hoje busco em todas as mulheres, e jamais o encontrei.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.











Recordações de uma final de festival

* Por Laís de Castro

Eu sei que estava nos bastidores do Teatro Paramount (hoje Teatro Abril, na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo) e corria o ano da graça de 1967. Não me perguntem, por favor, qual era o mês (fazia frio) e muito menos o dia. Na verdade, eu tinha tenros 20 anos de idade e era repórter de uma revista chamada inTerValo, da Editora Abril, a única no país sobre televisão. Naquele momento o Brasil vivia uma ditadura brava e pesada e não existiam (que bom!) as revistas de fofocas e nem as de celebridades. Os ricos eram discretos (ostentar era, e é, brega e esse quesito era levado a sério). Depois viriam a Fatos&Fotos, da Bloch, e a Folha e o Estadão começariam a se aventurar pela cobertura de TV. Mas isto é para uma outra ocasião.

Por enquanto estou nos bastidores do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, tudo o que uma menina de 20 anos gostaria de fazer na vida. Todo mundo brigando por uma entrada e eu lá, no meio dos artistas…

Não se tratavam os artistas como deuses

Existiam ali quatro camarins, se é que assim poderiam ser chamados aqueles quartinhos sem banheiro, feios e mixos. Não havia o dono de um camarim, todos se arriscavam por todos. Maquiadores, assessores? Gente, uma maquiadora só para todos, e era muito. O pessoal chegava de táxi… Um outro camarim, mais amplo, também era ocupado por todos. Garçons? Nem pensar. Quem quisesse, que levasse seu uísque e pegasse o gelo no bar vizinho. Como vocês vêem, os tempos eram bem outros. Não que houvesse economia. É que não existia a mentalidade de tratar artistas como deuses, só isso.

Lá estavam, todos juntos, Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes, Edu Lobo, Nara Leão, Geraldo Vandré, Paulinho da Viola, Jair Rodrigues, o Zimbo Trio, o Tamba Trio, Caçulinha e seu regional, e muitos outros. Até Roberto Carlos e Hebe Camargo cantaram no Festival – ou, como se dizia naquele tempo, defenderam suas músicas. Quem ganhou foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinan, cantada por Edu e Marília Medalha; em segundo ficou “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, apresentada por ele e Os Mutantes. Em terceiro, “Roda Viva”, de Chico Buarque, com ele e o MPB-4; e, em quarto, “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.

Posso dizer que eu convivia com todos esses artistas; eram pessoas bem mais simples, mais tranqüilas, mais accessíveis e menos assediadas então.

Eu sabia que no dia seguinte iria passear pela cidade com os vencedores para fazer as fotos da capa da revista com o José Ferreira da Silva ou o Paulo Salomão, fotógrafos contratados da revista.

Mas por enquanto ainda estou nos bastidores, onde as pessoas tomavam o uisquinho e conversavam. O festival rolava, cada um apresentava sua música e a gritaria do público era quase insuportável. Palmas e vaias em centenas de decibéis.

Do lado de dentro, todos estavam nervosos, mas fingiam calma.

Nara Leão me perguntou:
- Você sabe como é que eu chego a Paraty, daqui de São Paulo?

Eu me odiei porque não sabia e tive que mostrar minha ignorância. Naquele tempo Paraty era um lugar apenas para os intelectuais mais iniciados do país. Nara Leão era uma delas. Parece que ia para lá, quase sempre, com Ferreira Gullar, Cacá Diegues, sua irmã Danusa (ela ainda pode confirmar) e outros menos votados. Era uma turma linda.

Elis Regina estava vagando de lá para cá, bem nervosa, Edu Lobo, sempre isolado num canto. Chico Buarque nem se fala. Era um cantinho e um copo de uísque:
- Pode fotografar – ele falou. – Não tem nenhum problema eu tomar meu uisquinho aqui.

Verdade. Não tinha mesmo. Mas não fotografamos – para quê?

Os Mutantes, que se apresentariam pela primeira vez, estavam completamente deslocados. Rita Lee me perguntou:
- Você acha que vamos ganhar?
- Imagino que sim – respondi. E aproveitei para plantar uma matéria. – Se ganharem, me avisa onde vai ser a comemoração, para eu ir com o fotógrafo?
- Aviso – disse ela.

Gilberto Gil e os Mutantes não ganharam com “Domingo no Parque”, mas foram aplaudidíssimos; a música foi um sucesso e os Mutantes se tornaram astros. Eles foram comemorar, mas Rita Lee não me contou onde. Dias depois, estivemos na casa de Sérgio e Arnaldo Dias fazendo a primeira reportagem com eles para uma revista nacional. A casa ficava numa travessa da Avenida Pompéia e tinha uma varanda com recorte redondo. Fizemos várias fotos. Outro endereço onde estive para fazer uma reportagem foi a casa de Rita Lee, na Rua Joaquim Távora, na Vila Mariana. Ali moravam o pai dela, um dentista, a mãe e duas irmãs mais velhas. Era um sobradão com uma varandinha, janelas e portas bem antigas, que não combinava com ela. Uma garota moderna. Mas tinha que ser assim: Rita seria a ovelha negra. A mais branca que se conheceu.

Jair Rodrigues plantava bananeira

Voltando aos bastidores: num certo momento me enfiei no camarim maior, onde estavam Nara Leão, Caetano Veloso (ainda bem tímido) e Jair Rodrigues, que, inquieto, plantava bananeiras e brincava o tempo todo. O camarim era grande, mas tosco: tinha um carpete velho e meio rasgado, uma bancada de tábuas mixangas, implorando por uma lixa e um bom verniz. Na verdade não ouvíamos o que acontecia no palco.

Eu entrava e saía a toda hora para conferir tudo, não perder nem um lance. O pessoal do MPB-4, que acompanhava Chico Buarque, conversava na coxia, sobre a panela de pressão que aquilo estava virando.
- Vai dar pau – disse um deles, não me lembro qual.
- Não vai – respondeu o outro. – Festival é sempre assim.

A verdade é que os estudantes, prensados pela ditadura militar, precisavam gritar contra as músicas que consideravam “da direita” e aplaudir as “de esquerda”. Era uma válvula de escape. Mas neste terceiro festival não havia músicas escancaradamente políticas. De resto… o pessoal andava comportadinho depois de muito susto.

Daquele camarim maior, como eu já disse, ao lado de Nara Leão e Jair Rodrigues de cabeça para baixo, não se ouvia nada além de um zumbido forte. De repente, entrou pela porta Sérgio Ricardo, vermelho como uma cereja, furioso, gritando palavrões – “vão todos pra puta que os pariu” – o que na época era raro. Elis vinha correndo atrás e tentava abraçá-lo. Edu Lobo apareceu, apaziguador, mas assustado. Chico Buarque também entrou. Trancaram a porta e Sérgio começou a gritar: “Quebrei o violão e joguei mesmo, não estou nem aí com esse público grosso e mal educado, um bando de filhos da puta, não me deixavam cantar”.

Todos tentavam consolá-lo ao mesmo tempo, o que, afinal, não resultava em nada, tal a confusão. Nara continuou quieta no canto dela, Elis conseguiu consumar o abraço protetor, Edu falava pausadamente algo parecido com “que merda”, Chico estava mudo, mas com cara de solidário. Jair Rodrigues desvirou da bananeira e ficou olhando tudo, assustadíssimo. Nunca tinha visto algo assim de perto. Nem de longe. Sérgio Ricardo estava roxo, com lágrimas nos olhos, mais de raiva do que de tristeza. Os organizadores começaram a bater na porta e Jair Rodrigues saiu. Naquele momento, alguém me viu ali.
- Tem uma repórter aqui dentro. Põe ela pra fora.

Eu saí, mas já tinha gravadas na mente as primeiras reações de todos, que, na sua maioria, reclamavam das vaias da criançada da platéia.

“Foderam a música”, diz Elis para Dori e Nelsinho

Depois que tudo se acalmou, chegou o momento crucial dos resultados. A primeira categoria a ser chamada foi a de melhor intérprete.

Não poderia nunca ser outra senão Elis Regina, com “O Cantador”, de Dori Caymmi e Nelson Motta. Ela ouviu a indicação e, antes de entrar no palco para repetir a canção, deu um beijo no Nelson Mota, outro no Dori Caymmi, os autores da canção, e disse:
- Foderam a música; se eu levei intérprete, a música não vai levar mais nada.

Entrou no palco e cantou, como sempre, como ninguém. Uma deusa, uma criança, uma menina, Elis Regina.

Roberto Carlos foi vaiado intensamente quando cantou a quinta colocada, “Maria, Carnaval e Cinzas”, de Luís Carlos Paraná. Coisas daquela época em que tudo era radical, “de direita” ou “de esquerda”; para a platéia, “de esquerda”, Roberto Carlos era jovem guarda, alienado, “de direita”. Ele foi vaiado, mas manteve a verve.

Durante o ensaio

Cerca de seis horas antes, naquela mesma tarde, eu estava no ensaio dos cantores no mesmo Teatro Paramount. Conversava com um e com outro, passei por Elis Regina:
- Me conta uma novidade.

Ela deu uma daquelas gargalhadas gostosas e, ao lado de Nelson Motta, brincou:
- Nelsinho é veado! – e caiu na gargalhada de novo. Todos riram. Mas parecia mesmo que eles estavam era namorandinho… não sei.

Passei em seguida pela Marilia Medalha, sempre ao lado do Edu Lobo:
- Você acredita que vai ganhar hoje?
- Vamos ganhar, sim, a música do Edu é a melhor! – respondeu ela, confiante, sorriso no rosto, sempre simpática, uma voz densa e marcante.

Gil ensaiava com os Mutantes e alguns puristas reclamavam: - Guitarras, para quê?

Era o início da tropicália, alguém duvida? Mas naquela época era mais uma boa briga comprada pelos baianos do que qualquer outra coisa.

Ouvi o Chico ensaiando “Roda Viva” com o MPB-4 e sempre fugindo dos repórteres, o Caetano cantando “Alegria, Alegria”, com os Beat Boys, um conjunto de rock argentino. Ousado. Magro, seco, sentava sobre as duas pernas e ainda sobrava espaço. Com roupas coloridas. A música de Caetano cantava “o sol nas bancas de revistas”. Alguém me assoprou:
- A namorada dele, Dedé, trabalha em Salvador num jornal chamado O Sol.

Não acreditei, mas registrei o nome da namorada, Edelzuite, baiana de boa cepa. Depois eu saberia que Edelzuite era uma corruptela de Ethel Sweet, uma artista americana que havia feito sucesso três décadas antes… A mãe de Dedé era fã dela.

Durante aquele ensaio histórico, Nana Caymmi reclamava que dormia num colchão, precisava “comprar uma cama urgente, porque já estava com dores no corpo”. Ela, tão jovem, estava casada com Gilberto Gil naquela época, e ele não queria a cama.

Naquele ensaio histórico, que vi inteiro ao vivo, tirava uma notícia aqui, outra ali, quando o Sérgio Ricardo foi passar a música que cantaria à noite, “Beto Bom de Bola”. Depois, sentado ali, o cantor, compositor, cineasta famoso me perguntou:
- Gostou?

É claro que ele não vai se lembrar, mas, na resposta, cometi uma das maiores gafes da minha vida:
- Gostei, mas preferia sem aquela parte falada.

Ele ficou furioso:
- Não tem parte falada! É tudo cantado!

Eu me desculpei e saí de fininho. Imagino, afinal, que as vaias aconteciam por causa disso: o cara cantava meio que falando e naquela época não existia rap, gente!

No dia seguinte, depois que passou o Festival, na redação da revista, já cantávamos, usando a melodia de “Ponteio”: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra quebrar/ Bronqueio!” E, embora não existisse internet, esse refrão se espalhou e foi cantado por todos os experts da platéia dos festivais durante um bom tempo!

Bem, voltando ao camarim. Pronto, fui expulsa. Mas já havia visto o suficiente. Escrevi tudinho, que saiu na edição seguinte da revista inTerValo. Eu daria um bom dinheiro por aquele exemplar da revista, hoje. Não tenho mais nenhuma edição daquela raridade. Uma pena. Tenho apenas minha memória. E essa pude dividir com vocês.

(Texto reproduzido de “50 anos de textos”, http:// 50anosdetextos.com.br)

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.









A vida sem manual

* Por Evelyne Furtado

Acredito que algumas pessoas sabem como agir em cada passo da vida, ou ao menos assim demonstram; outras hesitam nas transições (naturais ou não) e são essas que me interessam no momento.

Refiro-me àquelas que se sentem perdidas entre uma fase e outra da vida; as que ciclicamente perguntam-se o quê e como fazer a partir de então.

Em algumas situações nos assustamos ante a percepção de que a vida não vem com manual e nossas mentes revisitam os conhecimentos adquiridos procurando respostas para uma equação de difícil solução.

Temos consciência de que algumas saídas anteriormente exploradas já não nos servem, enquanto outras não nos motivam o suficiente para transcendermos. Os sinais são múltiplos e os caminhos vários, o que só aumenta a confusão interior.

Pessoas queridas nos oferecem afeto, apoio, conselhos e exemplos de caminhadas. O amor é nutrição mais que bem-vinda, porém nosso caminho é singular. Cada experiência é única.

Os livros são valiosos: a filosofia oferece algumas respostas e mais perguntas; os romances e a poesia nos encantam e albergam nossas almas cansadas.

A fé é um dos recursos mais importantes, pois conforta e dá sentido à existência. Não acredito na sobrevivência da humanidade sem a crença coletiva em um ser superior.

Mas se não podemos continuar no mesmo compasso de antes e não descobrimos quais os seguintes, uma pausa é salutar para o reabastecimento sem culpa, pois até os grandes param, que o diga Dr. Freud, que estancou diversas vezes durante a elaboração de sua teoria psicanalistica.

Se possível – e quase sempre é – que a angústia que acompanha a travessia seja temperada com alegria e prazer, sinais valiosos de que vale a pena insistir na reinvenção da vida até que os primeiros passos sejam dados na nova direção.

* Poetisa e cronista de Natal/RN



Propagação

* Por Talis Andrade


Correndo e cantando
por variados caminhos
cumpro a sina
de quem se arrisca
no louco aprendizado
de adestrar as garras
no próprio corpo

Correndo e cantando
por estranhas terras
meu corpo vai se enredando
em um campo de espinhos

Correndo e cantando
por variados caminhos
a parte do corpo que sobra trago
em uma rede amarrado
para ser enterrado
na limosa
revolvida terra
em que outros cadáveres
foram plantados

(Do livro “Cavalos da Miragem”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).