sábado, 6 de outubro de 2018

Noé - Marco Adolfs


Noé

* Por Marco Adolfs

Chove torrencialmente ao longo de todo o rio. O instável período chuvoso da Amazônia. Céus com nuvens formando lençóis negros. Temporais fazendo as pessoas acreditarem em um novo dilúvio de Deus.

Na pequena e insular comunidade ribeirinha, no interior de um igrejinha toda em madeira, um corpo é velado. Três mulheres exercem o velório do pequenino morto.  Em lágrimas que escorrem acompanhando a chuva lá fora.

Elas olham na direção daquele rio encrespado de solidão.  Ao redor, a selva goteja tristemente. No caixão está o corpo de Noé. Rodeado de flores e velas. Envolvido em um pano grosso que esconde as pústulas que o mataram. Alheio e livre das dores de todos.

Uma das mulheres, não aguentando a sua dor, levanta-se e começa a falar em tom lamentoso.
- Meu Noé morreu!... Morreu!... E não quero saber que ele seja enterrado debaixo da terra!... Não quero!... Meu primeiro filho...Deus!... Tu fostes muito cruel!

E ajoelha-se ao lado do caixão, debulhando-se em mais lágrimas.

Lá fora a chuva parece aumentar de intensidade. Uma das mulheres tenta acalmá-la.
- Não diga isso, minha irmã...Vem...Se acalme... Deus levou um anjinho…
- Não!... Não quero ele embaixo da terra. Deus pode querer. Eu, não. Disse isso, olhando ainda na direção do rio, lá fora.

A imensidão líquida daquele lençol de água a afronta. Água embaixo; água em cima. Um lençol e uma cortina. Suas lágrimas. O corpo líquido da terra. É quando ela, então, no meio daquele torrente toda, divisa um barquinho. Vindo na direção da comunidade. Lento, perdido. Um pontinho.

É o barco do velho”, pensa. Ela resolve esperar por aquele barco para falar com o barqueiro. O velho. Fazer-lhe um pedido. Pagar o bastante de suas economias, por um pedido ao barqueiro. Ela calcula que irá demorar uns trinta minutos para o barco aportar.
- Não pensa assim, mana! – diz uma das irmãs.
- Estou só esperando aquele barco chegar. A outra irmã então pergunta, querendo confirmar sobre a sua dúvida.
- Pra quê?
- Vou pedir pro barqueiro levar o meu filho para eu jogar no meio do rio - ela responde.
- Quero que ele vá para dentro do rio - continua. Que vire água, também. Que não seja comido por vermes. Mas sim, por peixes. Os peixes. Uma dádiva. Ele ficou nove meses no meio da água. Quero que volte a ser livre. Na água. Da água veio, pra água voltará. Nada de terra.
- Mas mana!? Não se pode fazer isso! Ficou maluca? Volta-se para a irmã. Olhar transtornado.
- Fiquei. E eu posso fazer o que eu quiser com o meu filho. Quem vai proibir? Não tem nem um padre aqui. Nem o prefeito. Todos estão desaparecidos. Os outros todos dentro de suas casas, recolhidos. Ele morreu em casa. E vocês fiquem caladas, viu!

O barco aporta. Ela pega o corpo do filho e desce a barranca, seguida pelas irmãs. Todas choram. Molham-se. O barqueiro recebe o dinheiro, acomoda as três mulheres e mais o pequeno defunto. Começa a manobrar o barco. E parte levando a todos. Na direção do meio do rio.

A chuva não para. O rio não para. A vida e a morte não param.
- O senhor também, não conte nada a ninguém - a mãe diz, para o velho barqueiro. Que balança a cabeça, concordando.

Em determinado momento o barco a motor então para. O rio e a chuva parecem esperar. Maria, a mãe, levanta-se com o pequeno corpo em seus braços. Todas continuam chorando. Impossível parar. O barqueiro fuma. Ela então se aproxima da popa do barco. Naquele momento é difícil o equilíbrio, face aos banzeiros.
- Para o rio, meu filho! - ela diz, antes de jogar o corpo do pequeno Noé. Que flutua por alguns segundos, antes de desaparecer no corpo tormentoso do rio.

O ribombar de um trovão faz tremer a todos, de susto. E todos partem. De volta ao porto.


* Formado em jornalismo, é roteirista, escritor, produtor e diretor de televisão. Atualmente trabalha na TV Cultura do Amazonas, produzindo documentários sobre temas regionais e sociais. Nas horas vagas, escreve romance e contos.




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