segunda-feira, 1 de março de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Escudo vulnerável

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “A bola conspira por meu coração”

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, crônica “Virago”.

Coluna A vida como ela é – Celamar Maione, conto “Desconfiança de amor”.

Coluna Sensibilidade e sutilezas – Aliene Coutinho, poema “Deixa”

Coluna Porta Aberta – Sérgio Castanho – artigo “Meio século de consagração”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Escudo vulnerável

Caríssimos leitores, boa tarde.
A Literatura surge, na vida de muita gente, meio que por acaso. Nem todos os escritores manifestam vocação para as letras precocemente, desde tenra idade. Aliás, diria, estes casos são mais exceções do que propriamente a regra. Boa parte começa a escrever sem nenhum compromisso, como uma espécie de desabafo íntimo e pessoal, de catarse, para, senão se livrar, pelo menos atenuar mágoas familiares, decepções amorosas, fracassos profissionais ou outros tipos de sofrimentos psicológicos.
Escrever, sem dúvida, é excelente terapia. Quem começa a produzir textos com essa intenção não raro descobre (por si só ou por opinião alheia) que consegue expressar com clareza e precisão idéias e observações e comunicar aos outros o que está sentindo, aprendendo ou pensando. Nem todos, convenhamos, que começam a escrever por essa razão, se tornam escritores.
Há muito literato em potencial por aí que sequer desconfia disso. Há quem componha poemas maravilhosos, para a namorada, para a esposa, para alguma bela mulher que sequer conheça e que nem por isso se julga poeta, mesmo sendo, de fato, um. Para alguns, falta, apenas, um empurrãozinho, um incentivo a mais dos parentes e amigos e, não raro, uma orientação a propósito de quem já é do ramo.
Tenho a felicidade de, ao longo da minha já extensa carreira (são 48 anos de janela!) haver “descoberto” para o mundo das letras vários desses inequívocos talentos. Muitos deles são, hoje, escritores consagrados (há, até, quem já ocupe cadeira em uma das tantas academias de letras). Se alguém lhes dissesse, há alguns anos, que um dia viriam a se tornar poetas acatados, romancistas de mão cheia, campeões de vendas de livros, certamente se mostrariam céticos e até poderiam se zangar conosco. São estranhos os caminhos da vida.
Claro que para se tornar um escritor, de fato, não basta o sujeito rabiscar seus íntimos desabafos, ou num diário, ou num blog, ou num caderno destinado a esse fim. São necessários vários e vários outros requisitos. Entre estes, destaco muito estudo, muita observação, muito treino; muito escrever, rasgar, tornar a escrever, tornar a rasgar e repetir esse exercício uma infinidade de vezes, até produzir um texto que lhe agrade em primeiro lugar, condição primária para adquirir possibilidade de agradar a terceiros.
Cesare Pavese costumava dizer que “a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”. Mas será que defende mesmo? É, de fato, escudo seguro contra as inúmeras rasteiras materiais, espirituais, afetivas e emocionais etc. que sofremos amiúde em nosso cotidiano? Protege-nos dos nossos demônios interiores ou os assanha e os torna mais perversos?
Sou, pois, obrigado a discordar, solenemente, do ilustre jornalista e poeta italiano. A Literatura pode até se tratar de escudo. Mas de um sumamente vulnerável, que deixa passarem flechas e mais flechas, sobretudo as mais pontiagudas e rígidas, que findam por nos ferir, posto que não mortalmente.
O bom escritor, o que faz escola, cujos livros são procurados avidamente, que tem um número incontável de fiéis leitores e se destaca pelo conteúdo da sua obra, é o que, virtualmente, se “desnuda” em público, que expõe suas intimidades e até suas entranhas para o mundo inteiro ver (no aspecto emocional, claro, pois se o fizesse literalmente, poderia estar sujeito até a prisão, por atentado ao pudor) e tem, nessa exposição, sua grande força, o fulcro da sua credibilidade, uma espécie de “cabelos de Sansão” que nenhuma Dalila consegue raspar.
Há quem se perca pelo excesso de pudor. Domina as técnicas do texto, tem conhecimento do idioma de fazer inveja a qualquer gramático, é objetivo, criativo e observador, sua cultura é muito maior do que a média, exsuda talento por todos os poros e, ainda assim... fracassa.
Por que? Via de regra, por não despertar a menor empatia no leitor. Este, intuitivamente detecta quando há falsidade num texto, mesmo formalmente bem-escrito. Nota quando falta-lhe paixão. Fareja quando falta sinceridade. Um texto desse tipo é bonitinho, mas ordinário, pois falta a exposição explícita das entranhas de quem o escreveu. É algo muito sutil, mas que nosso subconsciente capta.
Portanto, quem quer fazer da literatura mero escudo contra as ofensas da vida, pode se dar mal. É melhor que desista dela enquanto houver tempo. Muito talento se perde, muito diamante perfeito permanece escondido sob a ganga, muito escritor priva o mundo da sua visão e criatividade por medo (em alguns casos, pânico) de exposição.
Já li textos de Lygia Fagundes Telles, de Rachel de Queiroz e de outros tantos escritores, confessando seu temor de escrever. “Mas como?”, perguntarão, incrédulos, os que nunca passaram por essa dramática experiência Quem tem coragem de fazer essa confissão (e as escritoras citadas tiveram) explicam que aquilo que temem é justamente ter que se expor.
Mas no momento de produzirem suas obras, nem por isso fazem da literatura escudo coisa nenhuma. Expõem, sem nenhum pudor, seu âmago, sua alma, suas entranhas, suas vísceras, sem nada esconder e sem pudor, por mais que isso lhes doa. Se você não tiver essa coragem, esqueça a Literatura. Procure outra atividade em que não precise ser tão explícito e despudorado.

Boa leitura.

O Editor.








A bola conspira por meu coração

* Por Eduardo Murta

Bobagem aquele conceito de que o mundo era redondo e achatado nos pólos. A terra, aos olhos de Luana, era literalmente uma bola. E, quatro em quatro anos, um terreno em ebulição. Tempos de Copa do Mundo. Daí se travestir em guerreira. O rosto partido num verde-e-amarelo tropicalizado. E os cabelos, que só confiava a salões de grife, borrava em tinta de camelô para cair na festa. Até concessões ao cardápio fazia. Saíam o champanhe, a mussarela de búfala regada a tomates secos e rúcula e entravam feijão tropeiro e chope. Com colarinho marcante, por favor.

Não era casual, portanto, que Nando se desse férias exatamente naquele período. Afinal, fizera pacto de convivência com outra mulher. Com a Luana dedicada à magia de dar vida a orquídeas até nas paredes do apartamento. A que, mãos de seda, construía carinhos ora de adormecer, ora de despertar sensual. A dos dedos que passeavam doces pelos enclaves do piano. Os sons imitando passarinhos – fosse dia de turbulência – ou evocando tremores – fosse dia de sobriedade sonolenta.

Mas bastava o primeiro sinal de febre cívica a que tudo desandasse. À mesa do café, abandonava as seções de agenda cultural para devorar, linha a linha, o que tivesse cheiro de grama: as bolhas nos calcanhares do craque, o desatino dos fãs, o desenho torneado das coxas dos atletas. E se entregava por inteiro à magia do futebol, um campo em que a conspiração dos deuses, e não a dos tratados científicos, dava as cartas definitivas. Como ela adorava aquilo.

Em casa, porém, pareciam fazer papéis trocados. Ele, o homem, disposto a esforço zero para compreender a lei do impedimento, ou por que, em lugar dos pés, não recorriam às mãos para levar a bola ao gol. Sequer o espetáculo de devoção das torcidas o comovia. Bestial por demais. E resumia, com acidez cortante: esse tipo de esporte deveria ser plano secundário para quem soubesse juntar mais de duas letras. A mulheres, então, qualquer engajamento soa condenável.

Se esqueceu foi de avisar a Luana e ao acaso, que por capricho o levaria até ela em dia de fila de ingressos. O povaréu abraçando o quarteirão, ele mergulhado no mosaico da banca de jornal. Compenetrado, flutuando no noticiário. Até aquela voz aveludada tocar-lhe os ouvidos, serena. Cantava o hino do clube. Fixou-se nas contrações delicadas dos lábios entoando o bordão. Cílios longos, aciganados. E o queixo em curvas que convidavam. Gamou. Puxou conversa, adoçou conquista. Tudo começou ali.

Nando só não imaginava que a paixão – não dela por ele, mas pelas quatro linhas – ganhasse aquelas proporções, ditando agenda para lá de religiosa. Os programas esportivos ao começo e ao final da manhã, ao início da noite, na virada da madrugada... Ele prendendo amarras em outros portos. Literatura, filmes de arte. Haviam feito pacto de respeito mútuo às predileções individuais, mas os hiatos se dilatavam além da conta. Veio lance capital. Aniversário de namoro, mesa reservada em bar romântico. Ela ausente. Refém da bola.

Ele mergulhou nos livros, tentando esquecer traços de mágoa, mas achando que o inevitável estava batendo à porta. E chegou naquele junho. Computador na internet: Copa. Televisão ligada: Copa. Jornais pela casa: Copa. Diálogos sem nexo: Copa. Viu os livros se assombrando, voando pela sala, no gol do adversário. E Luana, escrava da imagem reprisada, nem o percebeu lacônico: “Vou-me embora”.

Deu falta na manhã seguinte, a mesa do café por ser posta, um dos primeiros carinhos dele. Notou depois a ausência da escova. A prateleira da biblioteca esvaziada. E da foto de férias em Bariloche, marco do amor, só a moldura. Sentiu que excedera. Ligou, o localizou. E ouviu secamente: data e momento do encontro ele marcaria. Nando agendou para dois domingos à frente, mesmo horário da final da Copa do Mundo! Luana não retrucou. Iria.

Sábado anterior, semifinais, cruzou os dedos quando o Brasil entrou em campo. Que a perdoassem. O confronto em 0 a 0, torceu desesperadamente para que o jogador argentino, minutos finais, cara a cara com o goleiro, não errasse. Gol. É ela à janela do apartamento. Grita à morte verde-e-amarela. Se despenteia. Pranteia. É um espantalho em soluços. Afogada em sentimentos partidos. Um sopro solitário na engenhosa conspiração dos deuses.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.









Virago

* Por Daniel Santos

De saco cheio. Isso mesmo: de saco cheio – assim ela se sentia. E agora que marido e filhos não estavam, podia arranhar o verniz da civilização, abdicar batom e salto alto para resgatar antiga animalidade.

Ainda se obrigou arrumar as compras logo ao chegar do mercado. Depois ... Ah, que farra! Atirou longe os sapatos, ficou só de calcinha, fez macarrão e comeu na panela sem mastigar direito, farelos sobre a toalha.

Comeu de pernas abertas na cozinha, defronte à tevê, coçando a virilha sem o menor recato, que se enchera de princípios, de boas maneiras, das contenções várias que os homens costumam impor, mas ignoram.

Agora, como eles, cuspia comida sem pudor, enquanto cantarolava as músicas que as chacretes dançavam. Cada bunda, cada teta! E vibrava dando murros na mesa com autoridade de comandante, de proprietário!

Como era bom dar murros na mesa! Coçou a virilha, de novo, e enxugou a última garrafa de cerveja. Arrotou, enfim, com gosto. E entrou pela tarde esgravatando os dentes com palito, cuspindo longe os fiapos.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Desconfiança de amor

* Por Celamar Maione

- Onde você estava, Ricardo César? Demorou para atender!
- Tava no banho.
- Eu estou há mais de dez minutos ligando.
- Pronto. Atendi agora. Satisfeita?
- Você vem aqui hoje?
- HOJE?
- É.
- Não dá.
- Por quê?
- Amanhã acordo cedo pra trabalhar. E ainda tenho que organizar umas papeladas agora.
-Todo dia é isso?
- Isso o quê?
- Não me vê mais dia de semana. Só sábado e domingo. Deve ter outras.
- Que outras? E eu lá tenho tempo para ter outras? Trabalho que nem um louco e você vem com historinha de que tenho outra.
- Então por que você não vem aqui em casa hoje?
- Porque é quarta-feira e eu saí cansado do trabalho. Dia de semana não é dia de namorar .
- Não? E se a gente se casar? Só vai ter sexo final de semana?
- Aí é diferente. Pode ter sexo todo dia.
- Então a gente podia treinar .
- Treinar? Não precisa. Estou em forma.
- Duvido. Se tivesse, hoje vinha aqui e não inventava essa história de cansaço.
- Tá me desafiando?
- Tô . Vai me decepcionar?
- Infelizmente vou, meu amor.
- Jura que você não vem? São nove e meia ainda, dá tempo.
- Amoreco, deixa pra sexta-feira.
- Você tem outra. Ela está aí com você. Escutei um barulho agora.
- Barulho? Você está escutando demais.
- Ouvi uma porta batendo. Você mora sozinho. Quem está aí com você?
- Foi na televisão .
- Televisão? Mentiroso. Fala, Ricardo César. Quem está aí com você?
- Já disse que ninguém. Quantas vezes eu preciso falar?
- Não acredito em você.
- Então não posso fazer nada. Tenho que desligar . Tô com fome e quero jantar.
- Quanta frieza. É isso o que você tem pra me dizer?
- O que você quer que eu diga?
- Pelo menos dá um boa noite. Diz que amanhã vai me ligar. Manda beijo.
- Tá bom, meu amor. Dorme com os anjos. Sonha comigo. Amanhã te ligo. Beijo.
- Assim melhorou.
- Boa noite.
- Amanhã você vem aqui?
- Vai começar de novo? Já disse : Sexta-feira. Amanhã vou sair tarde do trabalho.
- Tô com saudade.
- Eu também. Depois a gente se fala. Um beijo.
- Escutei de novo. Barulho de porta.
- Você está escutando demais, amoreco. Um beijo gostoso.
- Beijo.

Ricardo César desligou o telefone resmungando e gritou :
- Marcelo, tá na cozinha?
- Tô.
- Abre a geladeira e pega duas latinhas de cerveja geladinha pra gente.
- Posso cortar uns queijinhos?
- Pode.
- Que canseira para se livrar da namorada. Por isso que eu não quero mais saber de nada fixo, cara.
- Sabe que você tem razão?
- Mulher é boa para usar e jogar fora.
- Vamos esquecer da chatice feminina que o jogo vai começar.
- Opa, nada como um jogo de futebol pela TV com uma cerveja gelada.
- Aperta o controle e aumenta a televisão. Imagina perder o início da partida por causa de mulher?
- Aposta quanto que o mengão vai ganhar?
- Uma caixa de cerveja.
- Apostado.
- Deixa eu desligar meu celular, não quero ser interrompido .
- Eu também. Jogo é sagrado.

O juiz apitou o início da partida. Ricardo César e Marcelo não desgrudaram os olhos da tela.

* Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos. É autora do livro de contos “Só as feias são fieis” (Editora Multifoco).










Deixa

* Por Aliene Coutinho

Deixa eu desligar o celular
Esquecer seu número
Seu endereço
Seu e-mail.
Deixa eu esquecer
Quem sou
O que fiz e deixei de fazer.
Deixa eu fugir daqui
Mudar de nome,
De CPF e identidade.
Deixa eu mudar de cidade
De profissão.
Deixa eu apagar minhas memórias
Lembranças da família
E dos amigos.
Deixa eu assumir
Outra personalidade
Trocar de roupa,
Pintar o cabelo
Ser outra pessoa.
Deixa eu morrer hoje
E amanhecer amanhã
Completamente diferente.
Deixa eu arrancar de mim
Pele, osso, alma,
Porque só assim
Talvez eu lhe esqueça.


* Jornalista e professora de Telejornalismo




Meio século de consagração

* Por Sérgio Castanho

Escrevo sobre o monsenhor Fernando de Godoy Moreira no ano em que completa meio século de ordenação sacerdotal. Propositadamente, não direi nada a respeito da transcendência de sua vocação. Escolhi outro caminho, diferente da ladainha encomiástica que timbra por acompanhar o padre em seu percurso. Deixei de lado as batidas no peito e as invocações do receituário litúrgico. Preferi enveredar por outra senda, mesmo sabendo, por já longa vida, que todos os caminhos levam a Roma.

Roma locuta, causa finita. Quando Roma fala, a causa está terminada. E que disse Roma pela voz de dom Hummes? Disse que este ano, comemorando o 150º aniversário de morte do Cura d’Ars, o papa declarou que ele seria o ano do sacerdócio. Em toda parte do mundo se celebrará, reverberando o mandamento da cátedra de Pedro, a figura do sacerdote. Mesmo considerando os desvios que aqui e ali os padres podem cometer, o papa quer que se reverencie esse ser humano denodado, que se afasta dos gozos e luzes da vida do comum dos homens para se devotar, com humildade e carinho, aos outros homens e mulheres que precisam de seu aviso prudente nos desfalecimentos que ocorrem cotidianamente no mundo.

Mas que coincidência! O ano do sacerdócio, por decisão pontifícia, é também o ano do 50º aniversário de ordenação sacerdotal de monsenhor Fernando. São duas comemorações, dois repiques alvissareiros de sinos, uma pelos sacerdotes em geral, outra por esse sacerdote especial. Outra decisão pontifícia já ocorrera, há anos, coroando com um galardão eclesiástico a trajetória desse padre. Refiro-me ao título, que merecidamente recebeu de Roma, de monsenhor. O título se lhe pespegou à perfeição. Hoje, ninguém mais fala do padre Fernando. Todo mundo se refere ao monsenhor Fernando ou até simplesmente “monsenhor”.

Isso me faz lembrar de outro monsenhor que tive a honra de conhecer e até de privar de sua amizade: monsenhor Emílio José Salim. Para os alunos da sua Universidade Católica, que ainda não era “pontifícia” àquele tempo, ele era também simplesmente “o monsenhor”. Quanta sabedoria, que eloquência no púlpito, que mansuetude nas conversas amenas de fim de tarde na sua casa à margem do Rio Atibaia, em Sousas! Certa feita, já professor da PUC-Campinas, eu dava uma aula às 7h da manhã. Monsenhor Salim passou por uma das portas e, vendo-me sozinho dando aula, não teve dúvida: Tu solus peregrinus in Jerusalem? (Tu sozinho peregrino em Jerusalém?).

Monsenhor Fernando, a despeito de sua sólida preparação, pois, além de sacerdote formado em tempos mais exigentes, é também bacharel em Direito, não seguiu a carreira acadêmica. Preferiu, como Vianney, o cura d’Ars, ser um pastor de almas, dedicando-se à sua paróquia como quem se dedica à humanidade inteira. Como dizem os franceses, católicos até a raiz dos cabelos, – ma vie, ma paroisse, ou “minha vida, minha paróquia”.

A rigor, o aniversário de ordenação sacerdotal de monsenhor Fernando se dá a 19 de dezembro, pouco antes do Natal. Mas ninguém esperou esse dia para o homenagear. Durante todo o ano se festejou o jubileu.

Monsenhor Fernando gosta de se cercar de amigos. Mais de uma vez participei de uma dessas reuniões em que algumas dezenas de afeiçoados do monsenhor se reúnem ao redor de sua mesa e celebram, à semelhança do que o padre faz no altar, uma coisa cada vez mais difícil no mundo endurecido que por aí corre: a amizade! É a essa celebração que me refiro. Mas o que há de espantar isso de se reunirem amigos, irmãos, para celebrarem a amizade? Quam bonus et salutaris est esse fratres in unum! Como é bom e salutar estarem os irmãos na unidade! Nessas reuniões bebe-se o justíssimo vinho da amizade, palavra que tem a mesma raiz que amor. E reparte-se o pão que aquece o coração dos mais empedernidos na luta pela vida, na sobrevivência na selva...

Não direi mais nada. Remeto quem quer que tenha chegado comigo até aqui ao título destas linhas: monsenhor Fernando, amigo. Nada há que acrescentar.

* Professor doutor de História da Educação na Unicamp , é membro da Academia Campinense de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas