sábado, 27 de fevereiro de 2010











O aprendizado de Nélida

* Por Luiz Carlos Monteiro

A construção de um testemunho intelectual com entradas no foro existencial sempre seduziu poetas e ficcionistas. As referências e exemplos são numerosos no tempo histórico-literário, começando com as civilizações greco-romanas, passando pelo medievo, até chegar à contemporaneidade. Esse testemunho pode manifestar-se em diários, cartas, poemas, memórias, discursos, diálogos, textos de autocrítica e ensaios autobiográficos. No caso brasileiro, de Machado de Assis a Carlos Drummond de Andrade, aparece de modo direto ou implícito na prosa de ficção memorialística ou autobiográfica ou na poesia que não esconde o eu subjetivo porém descarnado e centrado no referencial histórico do autor.

Com a publicação de Aprendiz de Homero, Nélida Piñon disponibiliza ao público o seu próprio testemunho intelectual que envolve ensaios sobre carreira, preferências literárias, concepções de assuntos polêmicos como magistério, religião, família ou a condição da mulher. Obviamente que em sua obra, configurada por uma competência que referenda a extensão, ela vem se descobrindo e descobrindo as faces ignoradas de seus leitores e personagens, além de mapear um país que assumiu como seu, quando se pensa nas suas origens galegas. A estreante de 1961 com Guia mapa de Gabriel Arcanjo, que teve recepção favorável da parte do crítico Fausto Cunha, não mais parou de escrever e vem se afirmando como autora de romances antológicos e reconhecidos de público, a exemplo de A casa da paixão, A força do destino e A República dos sonhos. Estes trabalhos abordam respectivamente, entre outras coisas, um erotismo sem concessões mas não pornográfico, a paródia bem humorada de uma ópera de Verdi e a imigração espanhola para o Brasil, mais especificamente de um grupo de pessoas que veio da Galícia. O reconhecimento internacional alcançado por Nélida Piñon comporta uma extensa listagem de prêmios, homenagens, traduções ampliadas de seus livros, passagens por universidades, além de títulos de doutorado honoris causa.

A mulher ocupa um lugar destacado nos ensaios de Aprendiz de Homero. Começa com Sara a conspirar contra Abraão e a rir de Deus por querer o divino romper a sua esterilidade depois de velha. A memória de Sara é a memória da submissão de todas as mulheres ao patriarcalismo de Abraão e à unilateralidade religiosa de Jeová, embora ela esconda segredos que ouviu dos diálogos entre ambos, a que nem o próprio Abraão conseguiu ter acesso. Em “Dulcinea – a agonia do feminino”, retorna até o texto cervantino, a inquirir sobre o visionarismo de Maritornes, mulher mundana e empregada da estalagem onde o Quixote e Sancho se hospedaram, e que não aceita o fato de o Cavaleiro ter idealizado uma dama tão impossível de existência quanto Dulcinea.
Todo um tratado sobre a ilusão é feito em “O espetáculo da ilusão”, que talvez seja um dos textos de mais difícil realização, pois analisa por dentro o livro A doce canção de Caetana, da própria Nélida. Uma leitura dentro da leitura, onde ela fornece as motivações para a escrita do romance, informa sobre a evolução da personagem Caetana, que tem como objetivo transformar-se em Maria Callas, numa apresentação teatralizada no lugarejo Trindade. A romancista não esquece de aludir à performance e ao sacrifício de artistas que impulsionam o teatro mambembe: “Caetana, contudo, na condição de atriz pobre, integra-se às expectativas geradas pelo espetáculo teatral que se anuncia no cine Íris. Sua natureza exigente requer da grei de artistas ativa participação. E, graças à ilusão que vai semeando em torno, sentem-se todos condenados à aliança imposta pela arte”.

As grandes amizades refletem-se nos textos sobre Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, estendendo-se a suas mulheres. Mas, o vetor analítico de Nélida não deixa ofuscar a sua crítica da obra de ambos, sobre a narrativa que engendraram. De Vargas Llosa em “O escriba Mario” ela faz o percurso crítico aprofundado do seu livro El hablador, onde Mario é personagem e autor ao mesmo tempo, narrador onisciente e sujeito participante junto aos índios machiguengues do Peru. Segundo ela, Vargas Llosa “infiltra o texto com artimanhas e artifícios. Impõe-nos, como consequência, o convívio com um autor que, de seu mirante de observador, fortalece-se por meio da perícia com que situa o imbróglio narrativo sobre o tablado livresco”.

Em Aprendiz de Homero, Nélida Piñon perfaz um roteiro crítico-interpretativo que alia uma marca subjetiva visível em toda a sua prosa, ao expressionismo de afirmações seguras e pensadas racionalmente sobre a obra de numerosos autores, canônicos ou não. Por isso seu estilo pode, em certos instantes, oscilar e bipartir-se explicitamente entre o real e o onírico, entre a cidade e o campo, entre o antigo e a modernidade. E é neste ponto que ela faz a defesa da inserção do clássico no contemporâneo, e vice-versa. Disserta sobre o deslocamento das massas rurais para os alojamentos urbanos precários e compartimentados, descarnando certa aculturação proveniente do êxodo rural para as grandes capitais, da substituição da natureza e da vida simples pela luta desigual pela sobrevivência, que só permite de passagem e fugazmente a consecução do tempo e do lugar para o sonho.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com





Sobejos de felicidade

* Por Urda Alice Klueger

Neste mundo cinzento onde estou a navegar na direção do ocaso, de repente, apesar de tão raramente, acontecem, como lampejos inesperados, alguns instantes de alegria que faíscam no plúmbeo desta minha vida como setas de luz e de beleza, e que, apesar da rapidez de faíscas, me enchem de calor e me deixam trêmula de felicidade.

Hoje, no inesperado deste cinza que me envolve, de repente aquele momento aconteceu, tão rápido quanto um relâmpago e tão inesperado quanto um terremoto, e o abalo de alegria que senti foi equivalente a muitos graus na escala Richter, e até agora, horas depois, ainda sinto meu coração trêmulo como se fosse de gelatina recém desenformada, tamanha a bênção que recebi.

Conto: era meia hora antes do meio-dia, e o trânsito já começava a se congestionar quando, fulgurante dentro da minha névoa opaca, o barquinho colorido da felicidade por um momento resplandeceu à beira da rua apinhada, na calçada irregular e meio desprezada desta minha cidade que se acha perfeita, e a seta da alegria se fincou em mim num abalo, e o meu cinzento se encheu de luz e de felicidade – mas como se vogasse para alto mar a imagem do barquinho desvaneceu-se em instantes, e só ficou dentro de mim aquela fugidia visão de um Passarinho de azul, branco e prata, um pouco inclinado como se a vida lhe pesasse, o rosto cheio de seriedade e concentração, como se carregasse uma tristeza, quiçá uma preocupação, que sei eu?

Da mesa dos deuses só me cabem sobejos de felicidade, como sobejos recebem os cães pacientes – a vida não me permite nem o vislumbre do que acontece nos banquetes sagrados, sequer no papel de escrava que porta um abano refrescante, como a gente vê nas antigas pinturas egípcias. Há que aceitar e vestir minha fantasia de cão, e embarcar no ocaso cinzento, para sempre, para sempre... e tremer de alegria quando, lá uma vez ou outra, receber sobejos de felicidade, como hoje...

E preciso de tão pouco para ser feliz.

* Escritora de Blumenau/SC..


Turista do medo

* Por Raul Fitipaldi


Meiembipe, Latitude 27, Santa Catarina, Brasil. Você conhece essa ilha com o tenebroso nome de Florianópolis, em homenagem à saga genocida de Floriano Peixoto. Moro aqui. E daqui viajo de palavra sempre, às vezes de áudio, por toda minha América Latina que tanto amo e pela qual pouco andei. Deste teclado em que agora escrevo, decolo a cada dia com um rumo mais estreitado, a lugares mais determinados. Sem dúvida, minha agência de viagens é imperial. Assim sendo, ela determinou que desde 28 de junho de 2009 passeasse pelas avenidas de Tegucigalpa, visitasse as ruas de San Pedro Sula, fosse até a fronteira com a Nicarágua, voltasse em caravana à Capital hondurenha.

Em não poucas dessas viagens me topei com corpos mutilados, pedaços de mulheres violadas, brigas de maras, esfaqueados nas montanhas, e até velei uma garota, Santa Wendy da Resistência, que me lembrou Cláudia Falcone de La Noche de los Lápices. Outra época, outra tortura, outra morte. Mas andei, até ver o David escorregar de uma corda, e fugir salvando o couro com Manuel e Ronny. Vi isso tudo como jornalista, como militante, como internauta, mudo, só, impotente, com lágrimas numa hora, com ironia em outras, com risos desvairados, porém, sem medo.

E depois dos milicos vencerem a primeira batalha, e antes do Zelaya aceitar o convite de Leonel Fernández, tudo mudou com o terremoto. A ditadura do fuzil deu lugar ao genocídio da “natureza?”. E o medo chegou, porque a quilômetros dos estertores teutônicos se me rasgou o coração em mil valas de pranto. De um segundo para outro, minha truculenta agência me comprou passagem para Santo Domingo, República Dominicana. Sou vizinho da morte e do espetáculo espantoso da impiedade, da cobiça, da invasão, da miséria mais atroz e planejada no corpo da minha Pátria Mãe.

Reflito, reconheço e assumo: é diferente a possibilidade de arrebentar um terremoto quando um ser querido, o mais querido por caso, pode sofrer as conseqüências fatais dessa monstruosidade e num país longínquo, e também muito pobre, por vezes algoz fronteiriço dos haitianos. Lá vou eu, com meu coração amarrado, meus olhos fixos, olhando o chão, as rusgas entre os homens e a terra, as rugas entre os paralelepípedos, as construções coloniais, e me paro, em frente a La Bolita del Mundo, ouvindo a respiração do vento, o vôo dos pássaros, os charcos de lágrimas. Lá vou eu, viajando de teclado, rastejando o ser querido sobre os escombros de outro terremoto.

* Jornalista de Florianópolis/SC

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Citação ou plágio

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Conversa com um tradutor”.

Coluna Visões do cotidiano – Silvana Alves, crônica “Não sou regra, nem exceção”.

Coluna Planeta Manjaterra – Renato Manjaterra, crônica “Plantando arroz”

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Insegurança”

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire – conto, “A entrevista”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Cítação ou plágio

Caríssimos leitores, boa tarde.
Uma notícia bombástica, divulgada recentemente, vem agitando os meios literários, e jurídicos, do mundo todo e promete dar muito pano para manga, e por um bom par de anos. Explico. Os herdeiros do escritor britânico Adrian Jacobs, autor de contos infantis pouco conhecidos até em seu próprio país, a Grã-Bretanha, que morreu em 1997, entraram com uma ação, em um tribunal de Londres, contra a consagrada campeoníssima de vendas J. K. Rowling. Sim, ela mesma, a criadora do personagem Harry Potter, que já rendeu tantas histórias e vendeu bilhões (sem nenhum exagero, bilhões mesmo) de livros, além de gerar um punhado de filmes.
Acusação? Das mais graves para qualquer escritor. Os autores da ação asseguram que o hipercelebrado bruxo, ídolo da gurizada praticamente em todas as partes do mundo (e de uma infinidade de marmanjos, diga-se de passagem), seria plágio da obra “Willy, o bruxo”.
A acusada, claro, nega e já mobilizou um batalhão de advogados encarregados de provar, por “a + b”, que a acusação é estapafúrdia e sem fundamento. Mas o caso promete, já que envolve não somente uma das mais consagradas escritoras da atualidade, mas, sobretudo, dinheiro, muito dinheiro, rios de dinheiro, algo orçado em alguns bilhões de dólares em direitos autorais. São cifras tão elevadas, que até deixam tontos a nós, mortais comuns, que nunca vimos de perto quantias tão mirabolantes e só podemos imaginá-las.
O suposto plágio teria ocorrido no livro “Harry Potter e o cálice de fogo”, de J. K. Rowling, publicado em 2000. “Willy, o bruxo” é anterior a ele em três anos, é de 1997, ou seja, o ano da morte de Adrian Jacobs.
E agora? Quem está certo? Quem está errado? É um tremendo abacaxi para os juízes descascarem, mas que fará, certamente, a alegria (e a fama) de um séqüito de advogados, das duas partes em litígio, que farão fortuna com a ação judicial. Afinal, “Harry Potter e o cálice de fogo” , o quarto da vitoriosa série, transformou-se em uma mina de ouro. Vendeu (pasmem) 400 milhões de cópias no mundo todo.
Mísero um por cento dessa tiragem (a “bagatela” de 4 milhões de exemplares) faria qualquer escritor, notadamente tupiniquim, se tornar milionário e nunca mais precisar pensar em dinheiro enquanto vivesse. Isso sem contar que o livro é hoje rentabilíssima franquia de cinema. São, como se vê, cifras mirabolantes em jogo.
O despacho da agência de notícias espanhola EFE, através do qual tomei conhecimento do processo, ressalta que “Willy, o bruxo” não passa de um livreto magrinho, de apenas 36 páginas, e que não vendeu o suficiente sequer para cobrir os custos de publicação. Ou seja, o autor, com essa obra, não fez o suficiente nem para pagar um “cafezinho”, como se diz popularmente (ou para uma dose de uísque, já que se trata de um britânico).
Adrian Jacobs, aliás, deu-se muito mal com literatura (como ocorre com a imensa maioria dos escritores). Tanto, que morreu pobre (o superlativo paupérrimo caberia, aqui, a caráter), em um asilo qualquer de Londres. Não deixou, pois, um tostão furado para os herdeiros (que nem cuidaram dele, convenhamos).
Muitos podem, a esta altura, estar perguntando: “O que diferencia plágio de mera citação de determinada obra, ou trecho dela?” A diferença está na apropriação indébita daquilo que outro escreveu. Se você reproduzir algum texto alheio, e nem precisa ser cópia literal, sem mencionar seu verdadeiro autor, dando a entender aos editores (e aos leitores principalmente), que foi você que o imaginou e redigiu, estará caracterizado o plágio.
Todavia, se tiver o cuidado de mencionar a fonte e, principalmente a verdadeira autoria, seu ato será perfeitamente lícito. Aliás, caracterizará, até mesmo, válida homenagem a quem concebeu a idéia, e que você certamente admira (caso contrário, não o citaria), forma até nobre de divulgar determinada obra e de render tributo a algum escritor que o mereça.
A expressão “publicação”, usada em relação a livros ou outros textos esparsos, significa, de fato, o que sugere. Ou seja, que aquilo tudo passou para o domínio público. Quem adquiri-los poderá fazer tudo o que quiser com eles. “Tudo”, aliás, vírgula. Tudo menos “roubar-lhe” o direito de autoria. Este existirá enquanto o mundo existir. É inalienável.
Não se pode sair por aí copiando o que lhe der na veneta, a três por dois, o que outros escreveram, garantindo que são obras suas. Isso é crime! É roubo! É apropriação indébita, ou qualquer coisa do tipo que o valha.
Esclareço que não estou afirmando (e muito menos negando) que a acusação contra Rowling procede ou deixe de proceder. Limito-me, no caso, a meramente repassar a informação que recebi, sem fazer qualquer juízo a respeito. Eu, heim!!! Sou macaco velho! Não ponho a mão em cumbuca. Além do que, não sou maluco! Os tribunais londrinos, com todo o ritual, aparato e solenidade que os caracteriza, que digiram como puderem esse indigesto pepino.

Boa leitura.

O Editor.





Conversa com um tradutor

* Por Urariano Mota

Por email, há poucos meses, tive uma conversa fecunda com um tradutor profissional, homem de cultura e sensibilidade literária. Foi uma conversa tão rica, que considero um crime guardá-la somente para mim. Como não lhe pedi licença para publicação, retiro de nossa correspondência os dados identificadores.

Tudo começou com um texto que apresentei a ele, morrendo de medo, sobre uma crítica que fiz a duas traduções de Machado de Assis para o espanhol. Ao que ele me respondeu:

“Aquele tradutor ideal de que você fala é, de fato, o norte a orientar, ou que deveria orientar, todo tradutor real, de carne e osso. A identificação com o ambiente do Autor é um dos problemas maiores: não só conhecer a língua a contento, mas também o ambiente, os usos, o peso específico das palavras ou expressões... Como vivi um bom tempo na França, frequentando franceses de todas as classes, adquiri um razoável conhecimento desse peso das expressões. Há casos em que uma expressão francesa é das que se encontram, por assim dizer, com naturalidade na boca de um taxista, enquanto a mesmíssima expressão aqui soaria de um pedantismo elitista de doer: jamais um taxista falaria assim. Temos de achar um equivalente. Mas nem sempre o tradutor pode ter essa vivência. É um mal para o qual não tem grande remédio. Afinal, não se pode exigir de todo tradutor que faça como uma conhecida minha, mulher de banqueiro, que traduziu os Papéis de Aspern: acompanhou o texto de todos os lugares em que se desenrolava: hospedou-se em Veneza em frente à casa onde estava o personagem, etc. Com o que ganharia pela tradução não pagaria nem o bilhete de avião, que dirá a hospedagem.

Traduzir enfrenta muitos problemas. O tradutor nem sempre viveu ou morou nos lugares onde corre uma narração. Em muitos países da América Latina, nem os espanhóis captam todo o sentido e nuances. Por um desses acasos, encontrei uma pessoa que foi amiga de um autor que traduzi. Sem ela, não sei como teria podido traduzir uma montanha de regionalismos. Se não tivesse tido essa sorte, teria de ter posto em português na base da intuição, do faro.

Enfim, a tradução é sempre uma aproximação, que traz as lacunas linguísticas e culturais do tradutor, seus entendimentos falhos, às vezes mesmo sua não identificação com o autor: não gostar muito de um romance, você não sabe como atrapalha a tradução. E no entanto a gente tem de traduzir gostando ou não!

Fiquei devendo o meu palpite sobre a questão do espanhol. Sobre o ler, não sei te dizer. Chutaria que deve haver um empate nas dificuldades e facilidades de ambos os lados. Sobre o falar, não. Ganhamos.

Não encontrei na estante o livro do prof. Alfred Tomatis, que li na década de 70, “L'oreille et le langage”. Devo ter emprestado para alguém que não devolveu. Tomatis era um médico da área fono. Estudou as questões da audição e, com base em suas descobertas, bolou um método de ensino de línguas, que o deixou rico. Vou ter de chutar os dados técnicos, já que não acho o livro. Mas a teoria dele é mais ou menos assim. Falar é reproduzir o que v. ouve. O ouvido é treinado pelo seu ambiente linguístico. A experiência empírica mostrava a ele que certos povos (= gente de certas línguas) tinham maior facilidade para aprender línguas que outros. Dois deles em particular: um, os russos. O outro, adivinhe? Pois é, nós, brasileiros!
Foi estudar a coisa e descobriu o seguinte. Cada língua tem um determinado espectro sonoro. Quanto mais amplo o espectro, maior a facilidade. Em Hz (ou microherz, sei lá), o espectro sonoro das línguas ocidentais ia de – chuto de cabeça – 100 a 6.500. Nesse espectro, o inglês vai, digamos, de 200 a 700. O francês, sempre chutando, de 600 a 1200. Daí por que os ingleses têm dificuldade de falar francês e vice-versa: a faixa de sons comuns é muito pequena. Os espanhóis, sempre chutando, têm um espectro entre 500 a 1000. Nós, brasileiros, vamos de algo como 300 a uns 5.000. Os russos, vão de 100 e poucos ou 200 a uns 6.000: quase todo o espectro! Daí porque temos maior facilidade para falar espanhol do que os hispânicos a nossa língua: cobrimos todo o espectro deles (ou quase todo, se me engano nos números), mas eles só uma parte do nosso. O português de Portugal também tem um espectro pequeno, se bem me lembro parecido com o do espanhol.

Se procurar por Alfred Tomatis no Google, tem vários links sobre ele, seu método e suas escolas”.

Ao que eu respondi:
“Os seus comentários, vindos da própria experiência, são muito bons, e pertinentes. Digo mais: você deveria ‘socializá-los’, transformá-los em mensagem coletiva. Para ter um ‘gancho’ (essa coisa estúpida de imprensa), você poderia partir da sua experiência com o autor em que você é especialista, porque é um nome que está na onda e na crista da onda agora.

Não sei se você conhece um livro de Paulo Rónai sobre tradução (Tradução Vivida, se não me engano – estou com preguiça de ir no Google, mas eu tenho o livro em casa). Recomendo. Paulo Rónai, você sabe, era húngaro e veio para o Brasil na época da 2a. Guerra (o Brasil, durante a Guerra, se beneficiou da presença de muitos intelectuais nesse tempo – Otto Maria foi um deles). E Rónai fez a magnífica tradução da Comédia Humana, edição da Globo. Pois bem, tem um momento do livro que ‘bate’ na medida certa com tuas observações. Paulo lia romances brasileiros em Budapeste e nunca entendeu como era que no morro existiam miseráveis. Inexplicável isso, para a realidade europeia. Na Europa, os castelos, as melhores casas ficavam no alto. Como era possível que miseráveis habitassem em lugar de castelos? Pois bem, foi só com a chegada dele ao Rio que ele pôde compreender: só então Paulo Rónai viu e sentiu as favelas lá no alto do morro.

Essa conversa não tem fim. Melhor continuá-la quando você vier ao Recife.

Mais uma. Olhe por favor uma afoiteza, uma insensatez absoluta que fiz, ao criticar uma tradução clássica de Dom Quixote para o português. Está aqui http://www.lainsignia.org/2005/junio/cul_015.htm

Fui. Espero os seus ensinamentos sobre essa loucura que cometi”.

Ao que o amigo tradutor, modesto e generoso, respondeu:

“Coitado do colega, rolou mais que o Quixote e o Rocinante! Você o desmantelou. Fico imaginando o que vai sobrar das minhas modestas traduções se passassem por seu crivo. Ainda bem que o meu autor não é o Quixote!

Aliás, se minha memória não me trai, o colega tradutor, na cena do moinho, baseou-se também na gravura do Doré, que apresenta o fidalgo pendurado com corcel e tudo na ponta de sua lança espetada na pá ou asa do moinho. Na gravura, a asa tanto pode ter sido flagrada dando um tapa no cavaleiro, como pode parecer, dependendo do olho (e da leitura do texto!), estar girando e erguendo ginete e montaria pelos ares. Vá saber, de resto, o que o tradutor francês pôs no texto que o Doré ilustrou.

Mas me diverti um bocado com as suas críticas, todas muito bem fundadas. Por espírito de classe, entretanto, é bom acrescentar que os revisores – e na época da tradução que você critica, os linotipistas – às vezes dão preciosas ajudas ao tradutor. Vou te contar uma, que ocorreu comigo. Menos mal que era um livro sem importância. Um desses psicanalistas ou algo assim (não me lembro do autor, um francês), falando da relação de erotismo com religião, escreveu longamente sobre o êxtase, uma forma de orgasmo, segundo ele. Aliás, Santa Teresa comprova isso irrefutavelmente. Bem, no texto havia muita gente em êxtase, logo, eXtática. O revisor não teve dúvida: trocou todos os xis por esses! Nem preciso dizer que pego o livro na editora, um dos meus primeiros trabalhos, faz quase 40 anos, abro uma página ao acaso, e me salta um santo eStático diante dos olhos. Quase tive um treco! Naquela trapalhada inicial da narración
que vira má ração, ou algo assim, parece ter havido uma entusiasmada intervenção do tipógrafo e do montador dos chumbos: um alterou as palavras, o outro empastelou o texto.

Continuando sobre a pontuação.

Você tem razão no que aponta, principalmente quanto ao corte do ritmo. Mas em outros casos não há como não intervir, pois seu uso, da pontuação, varia com a língua. E varia também com o tempo: a pontuação de um texto simbolista, p.ex., para não falar em textos mais antigos, difere bastante da que hoje usamos.

É um problema bem complicado, não há uma regra precisa para resolvê-lo: a que ponto se deve seguir à risca essas características originais do texto, a que ponto adequá-las aos nossos dias. Creio que depende do papel que o sinal de pontuação exerce na frase, da respiração do texto nas duas línguas.

O problema, aliás, transcende a tradução. Coordeno para uma editora uma coleção de contos e crônicas ‘clássicos’. A preocupação é partir sempre das edições prínceps. Publicamos todos os livros de conto de um clássico brasileiro a partir delas, de modo a oferecer o texto mais próximo possível do que compôs o mestre. Só foram feitas atualizações ortográficas... E de pontuação. Defendi que se mantivesse a pontuação tal qual, sem alterar uma vírgula: apareceria então, p. ex., que ele utilizava com grande frequência vírgula separando o sujeito do predicado, o que é considerado crime hediondo pelos gramáticos hodiernos! A vírgula muitas vezes servia nele para marcar uma pausa de leitura. P.ex. (invento): "e o Paulo chorou", sem pausa, é uma coisa; "e o Paulo, chorou", tem outro sentido = e o Paulo, [suspense] chorou. Uma constata uma quase banalidade. A outra tem forte carga emotiva. Fui voto vencido: os organizadores dos volumes afirmaram que a convenção consagrada era, nesse caso e em alguns outros, atualizar a pontuação. Quem sou eu para reverter a convenção dos donos dos clássicos! Conseguimos entretanto salvar várias peculiaridades pontuadoras do meu ex-vizinho (a casa dele ficava na esquina da rua onde nasci). Modéstia à parte, é uma das melhores edições disponíveis de seus contos.

Boas noites!...

Estava aqui batucando no teclado mais uma página do autor que traduzo, quando me ocorreu acrescentar o seguinte. Há que se levar em consideração uma coisa, também. Melhor dizendo, eu levo. Nem todos os textos são iguais. O Quixote é uma coisa; o que traduzo, outra. O primeiro é um monumento da literatura; o segundo um bom autor contemporâneo. O segundo traduzo com a editora me pagando por página, isto é, trabalho al destajo, por produção, à la pièce, de olho no meu saldo bancário. O Quixote não dá para traduzir assim. Digo, eu jamais traduziria assim: tendo de fazer ‘x’ páginas por dia para poder pagar minhas contas. É um trabalho de longo prazo, uma espécie de missão, não um ganha-pão. Já recusei algumas traduções por achar que não daria para fazer um trabalho à altura, no sistema corrente de remuneração. Um deles, para mim um dos maiores romances do séc. XX, escrito por um canalha consumado: Céline. Calculei que, para fazer uma tradução decente do livro, necessitaria um ano de trabalho, no mínimo. O que me pagariam seria o equivalente a uns 3 ou 4 meses de trabalho normal. Como não tenho outra fonte de renda, e a editora jamais me pagaria 3 ou 4 vezes o preço da lauda, não pude aceitar esse desafio que adoraria ter enfrentado. Deram para outra pessoa, que não necessitava de uns trocados como eu para sobreviver. E que, diz-se, fez um trabalho muito bom. Se não me engano o livro ganhou recentemente uma nova tradução, creio que da..., tradutora de primeiríssima. Outro que recusei, por motivos parecidos: ‘A condição humana’, que acaba de ganhar também uma tradução primorosa de um mestre.

Certas obras eu só ousaria traduzir se ganhasse na loteria, e não precisasse da remuneração da editora. Como não jogo nunca... “

E aqui ficamos, para a minha infelicidade. Esse homem é um intelectual, um tradutor fino e raro que jamais ostenta o brilho. Ponte entre povos, eu o vejo como uma ponte de ouro que, de tão pisada, ninguém nota.

* Jornalista e escritor







Não sou regra, nem exceção

* Por Silvana Alves

Não sou regra, nem exceção. Fujo, porém, delas. Não quero nada que me prenda, nem que me largue. Quero completude, plenitude e intensidade. Sou frágil para as perdas, para os dissabores, choro fácil e confio no inconfiável.

Da mesma maneira que choro, sorrio largamente como uma criança. Confio no olhar, e quase sempre, erro. Desespero-me facilmente e logo as doenças psicossomáticas surgem. Tenho uma centralidade só minha, que causa irritação em outras pessoas.

Chego a ser doce como mel e ácida como o limão. Por vezes, indiferente. Por menos, incapaz de perceber certas atitudes que assustam. Medo do surpreendente e fugitiva daquilo que pode ser a felicidade.

Não procuro alguém, nem respostas. Procuro por simplicidade, pelo torto, pelo anormal, pelo difícil, talvez pelo excluído. Não quero regra, nem exceção.

Quero você, meu real e minha exceção.

* Jornalista formada pela FATEA (Faculdade Integrada Teresa D´Ávila). Duas palavras falam por mim: vida e poesia.