Aventura
intelectual
A
leitura dos livros de José Saramago é uma aventura. Não pense você
que me lê que se trata de uma crítica a esse originalíssimo
escritor que, não por acaso, foi o primeiro (e até aqui o único)
de língua portuguesa a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura. É
verdade que seus textos, dado seu estilo peculiar, exigem atenção
redobrada do leitor para não perder o fio da leitura. Em diálogos,
por exemplo, ele não usa travessões e sequer aspas para
caracterizar a fala dos personagens. Os parágrafos são longuíssimos
e, por isso, tendem a nos distrair.
Mas...
a leitura de José Saramago é uma aventura. É uma aventura tanto
de caráter estético quanto e, sobretudo, intelectual, pelas ideias
que expõe. E pela linguagem, não raro camuflando interminável tom
de ironia, de que se utiliza. É um escritor que sai da mesmice
reinante, abre mão do óbvio e brinca, o tempo todo (ou pelo menos
assim parece), com quem o lê.
Acabo
de reler um dos seus romances menos badalados, mas dos mais
magníficos, e continuo abobalhado, sem saber de que forma
analisá-lo. Refiro-me a “A jangada de pedra”, lançado no
Brasil, em fins dos anos 90 do século XX, pela Companhia das Letras.
Acompanhei, com a respiração suspensa, a aventura dos seus cinco
principais personagens (humanos) – Joana Carda, Joaquim Sassa,
Pedro Orce, José Anaiço e Maria Guavaíra – além de três
irracionais, dois cavalos e um cão sumamente estranho (que sequer
ladrava por não ter cordas vocais) e uma máquina, mais
especificamente um automóvel, chamado de Dois Cavalos, por ser esta
a potência do seu motor.
A
história (seria metafórica?), gira em torno de uma incrível
separação da Península Ibérica, constituída por Portugal e pela
Espanha, do restante da Europa. No caso, todavia, não foi uma
ruptura política, econômica, social e/ou cultural. Foi física
mesmo. As montanhas, no caso os Pirineus, racharam-se de alto abaixo,
respeitando, rigorosamente, a linha de fronteira. A princípio, foi
uma rachadura de centímetros. Posteriormente, esta se alargou, se
alastrou, passou a ser de metro, de quilômetros, de milhares de
quilômetros e, subitamente, a Península Ibérica começou a
deslizar no mar, sem destino, como imensa jangada. Incrível “jangada
de pedra” (daí o título do romance).
Todo
o enredo gira em redor dos personagens que citei, quatro portugueses
e um espanhol (o único que morre ao cabo de toda a aventura). Joana
Carda risca o chão com uma vara de negrilho (uma espécie de olmo) e
isso fez com que todos os cães de Cerbere, cidade francesa na
fronteira da Península Ibérica, começassem a ladrar. E o risco
feito no solo, não se apagava de forma alguma. Mesmo revolvida a
terra onde havia sido feito, ele se reconstituía como fora feito
originalmente, a seguir.
Joaquim
Sassa, por seu turno, caminhando por uma praia, arremessou uma pedra
relativamente pesada, de uns cinco quilos ou mais, irregular, mas com
forma lembrando um disco, contra as ondas. Esta bateu na água,
ricocheteou, subiu a altura inusitada e repetiu o ricochete várias
vezes, antes de, finalmente, afundar no mar.
O
espanhol Pedro Orce, farmacêutico de uma pequena aldeia de seu país,
subitamente passou a sentir o solo a tremer sob seus pés, embora não
houvesse terremoto algum, ninguém mais sentisse o tremor e os
sismógrafos registrassem linhas retas, indicando que a terra
permanecia rigorosamente imóvel.
José
Anaiço, professor primário, de primeiras letras, subitamente passou
a ser seguido, para onde quer que fosse, por crescentes bandos de
estorninhos, que apenas vários meses depois de deflagrado o
fenômeno, deixaram de segui-lo finalmente.
Maria
Guavaira, ao desmanchar meia de lã azul, viu formar-se um novelo
interminável. Quanto mais desfazia a peça, mais e mais havia a
desfazer. A iniciativa inicial, em busca de explicação para o
fenômeno da separação da Península Ibérica do continente
europeu, partiu de Joaquim Sassa, proprietário do automóvel chamado
o tempo todo de Dois Cavalos. Ele saiu em viagem, um tanto sem rumo,
e foi parar na aldeia de José Anaiço, que era seguido, sem nenhuma
explicação lógica ou mesmo ilógica, por centenas no início e,
posteriormente, por milhares de estorninhos.
Este
junta-se ao aventureiro original e ambos vão parar em uma
cidadezinha espanhola, onde o sexagenário Pedro Orce sente a terra
tremer sob os pés, sem que ninguém mais o sinta. Logo o espanhol
junta-se à dupla, que segue viagem à procura de Joana Carda.
Encontram-na e, na ocasião, dá-se o encontro com o misterioso cão,
que se tornará, a partir de então, personagem praticamente central
da trama, com seu misterioso comportamento.
A
mulher incorpora-se à estranha caravana em sua viagem sem rumo, em
busca de explicações. E aí dá-se o esperado, ou o natural, quando
pessoas de sexos diferentes têm relativamente longa convivência.
Joana, que havia abandonado o marido antes do episódio do risco no
solo com a vara de negrilho, apaixona-se por Joaquim Sassa (e
vice-versa) e ambos passam a coabitar maritalmente, mantendo relações
sexuais.
Entre
idas e vindas, a caravana vai parar na casa da viúva Maria Guavaira.
O automóvel, a essa altura, após atravessar Portugal inteiro, boa
parte da Espanha, e novamente grandes extensões do território
português, finalmente chega ao limite. Sofre avaria, impossível de
reparar. O agora quinteto, com o cão a segui-lo, decide ir até o
local em que se deu a ruptura, que redundou na separação da
Península Ibérica do continente europeu.
Com
o carro avariado, os cinco resolvem seguir viagem em um carroção,
puxado por um cavalo que pertencia à viúva. E dá-lhe mais
aventuras. Maria Guavaira e José Anaiço se apaixonam, formando dois
casais. Só o ancião Pedro Orde fica sem mulher. Mas, a dada altura,
as duas fêmeas, condoídas da situação aflitiva do espanhol, se
oferecem, primeiro uma e depois outra, ao sexagenário. Um dia, ambas
percebem que ficaram grávidas. Mas... quem seria o pai? Seriam os
respectivos parceiros ou seria Pedro Orce? Essa dúvida, Saramago
deixa no ar. Todavia, mais não lhes revelo para não lhes tirar o
prazer da descoberta caso se proponham a ler “Jangada de pedra”.
Se
porventura você se dispuser a empreender esta aventura
estético-intelectual, recomendo que esteja atento ao caminho, para
colher flores e mais flores de sabedoria à sua margem, como esta:
“Pensando bem, não há um princípio para as coisas e para as
pessoas, tudo o que um dia começou tinha começado antes que a
história desta folha de papel, tomemos o exemplo mais próximo das
mãos, para ser verdadeira e completa, teria de ir remontando até
aos princípios do mundo”. Ou como esta: “Se um dia tiveres um
filho, ele morrerá porque tu nasceste, desse crime ninguém te
absolverá, as mãos que fazem e tecem são as mesmas que desfazem e
destecem”. Ou como esta outra: “O homem é um animal
inconsolável”. Ou, ainda, como esta: “Este mundo, não nos
fatigaremos de dizer, é uma comédia de enganos”. E boa viagem,
nesta deliciosa aventura estético-cultural
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk,
A estética do absurdo, que nome poderia ser dado? A leitura é mais penosa do que descascar abacaxi sem faca, mas o miolo é doce.
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