quinta-feira, 21 de junho de 2018

Editorial - Quando é a mente que nos trai


Quando é a mente que nos trai


A nossa mente, não raro, nos prega peças incríveis, ou nos apronta surpresas que nos maravilham e nos deixam atônitos, ou nos trai sem a menor cerimônia e nos derruba, arrasa e aniquila. Por mais que julguemos nos conhecer, na verdade somos desconhecidos para nós mesmos, completos estranhos, sabemos pouco ou nada a nosso respeito. Isso chega a ser assustador.

Muitos dos nossos talentos e aptidões permanecem trancados a sete chaves em substratos profundos do nosso cérebro, que quase sempre nos são inacessíveis pela vida toda. Pode ocorrer, no entanto, de, sem qualquer aviso prévio, assim, de surpresa, tudo isso emergir, com força, para o consciente e nos transformar (para melhor ou para pior).

Conheço casos (e não poucos) de pessoas que passaram a vida toda detestando poesia, achando que se tratava de coisa de “maricas”. Aos 60 anos, ou mais, todavia, surpreenderam-se compondo versos de grande força expressiva e muita sensibilidade e muitos se transformaram, até, em refinados e prolíficos poetas. Por que isso acontece? Mistério! Mas nossa mente nem sempre (diria, quase nunca) é tão benigna e generosa nas surpresas que, amiúde, nos apronta.

Cabe, aqui, um questionamento. Como se sente, digamos, um artista plástico, um pintor consagrado, premiado em várias bienais, aplaudido e acatado pela crítica e pelo público, com suas telas vendendo aos montões e com sua cotação subindo de ano para ano, que, subitamente, sem nenhum motivo ou razão, perca a habilidade de pintar? Conheço muitos casos assim.

O sujeito atingido por tal desgraça, por melhor que seja sua estrutura mental, sobretudo psicológica, certamente irá “pirar”. Não compreenderia, jamais, o que lhe aconteceu e, frustrado e infeliz, iria procurar explicações (que não encontraria) até o último dos seus dias. Eu piraria de vez se me acontecesse algo sequer parecido.

Essa mesma perda de talento, este sumiço das nossas maiores aptidões pode acontecer com qualquer um, artista ou não. Pode ocorrer com um compositor, um escultor, um bailarino, um intérprete, um escritor ou um ator. Nunca duvidem disso e se precavenham (se puderem).

Esse, aliás, é o enredo do romance de um dos homens de letras mais admirados, festejados e premiados da atualidade, o norte-americano Philip Roth – candidatíssimo há pelo menos treze anos ao Prêmio Nobel de Literatura – intitulado “A humilhação”.

O livro, grande sucesso de vendas nos Estados Unidos, foi lançado no Brasil pela Editora Companhia das Letras. Destaque-se a primorosa tradução de Paulo Henriques Britto (raramente os tradutores são mencionados pelos críticos, a não ser quando fazem péssimo trabalho, que não é o caso).

O personagem central de “A humilhação”, ao redor do qual toda a história (logicamente) gira é Simon Axler. Trata-se de um consagrado ator de teatro, tido e havido como dos melhores na arte de representar, ganhador, por merecimento, de inúmeros prêmios que, aos 65 anos de idade, subitamente, constata, e em pleno palco, que não sabe mais atuar.

Esquece as falas, entra em cena na hora errada, “recita” os diálogos sem nenhuma naturalidade e se movimenta de forma desastrada e incompetente, pior do que os piores amadores. A princípio, pensa que essa experiência desastrosa foi fruto, apenas, de uma noite ruim. Mas, nos dias seguintes, sua performance, que já era ridícula, piora muito e descamba para o patético. A realidade que se lhe apresenta é uma só: não sabe mais representar.

A partir daí, sua vida se torna um inferno. Simon vê ruir uma carreira que construiu com tanto esforço e dedicação. É vaiado e ridicularizado pelo público. O diretor retira-o da peça, depois de desmoralizá-lo e humilhá-lo, diante de todo o elenco. Com a débâcle profissional – e como desgraça pouca é bobagem – tudo ao seu redor desmorona.

A mulher que ama, e que lhe jurava eterno amor, o abandona. E seu agente não consegue convencê-lo a retornar ao palco, em outras peças. Seu desespero cresce e a autoconfiança despenca a zero. Simon só vê uma saída para tamanho desastre existencial: o suicídio. Pôr fim à própria vida torna-se obsessão para ele.

É quando o outrora bem-sucedido e agora fracassado ator interna-se numa clínica psiquiátrica. Bem, todavia, mais do que isso não vou lhes contar. Se quiserem saber como “A humilhação” termina, comprem e leiam o livro, ora bolas.

Quanto ao autor, Philip Roth, tudo o que eu escrever a seu respeito será ainda muito pouco. Os amantes de literatura, certamente, devem ter lido muitos dos seus livros, como “O complexo de Portnoy” (1969), a trilogia de novelas “Pastoral americana” (1997), “Casei com um comunista” (1998) e “A mancha humana” (2000) e muitos outros.

Philip Roth é, sem dúvida, um dos maiores escritores norte-americanos da segunda metade do século XX. Gosto, sobretudo, do seu estilo coloquial, do seu humor, às vezes ácido e da sua capacidade de penetrar no âmago da alma humana e de lá extrair expectativas e angústias que sequer se suspeita que existam.

Em 1998, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção, com a novela “Pastoral americana”, e mais outras vinte premiações, antes e depois, só de lambuja. O que é lícito de se esperar de um grande ficcionista? Um grande romance, claro! É isto o que “A humilhação” é: um livro para ser lido num só sopro, posto que “sentido na pele”.


Boa leitura!

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Nenhum comentário:

Postar um comentário