No
ônibus depois da meia-noite
* Por
Roberto Beltrão
Rapaz,
já fui cobrador de ônibus, não sabe? Gostava de trabalhar à noite
na linha do bacurau. Pegava às dez e largava de madrugada. Mas
gostava. Nesse horário não tem calor, não tem empurra-empurra.
Mais tranquilo. Era assim que eu acreditava… Ah, sou Ademário.
Prazer!
Meu
serviço era numa linha que passava pela Avenida Caxangá. Avenida
rua comprida, viu? Quase seis quilômetros numa reta só. Durante o
dia é bem agitado – carros, ônibus, caminhões e motos passando
pra lá e cá. Muita gente nas calçadas ou atravessando as pistas.
Mas
à noite, principalmente depois da onze horas, a Caxangá fica
deserta. Nas paradas, só uma ou outra pessoa espera. A luz amarela
que vem dos postes quase não dá conta de afastar a breu. E é um
silêncio de cemitério – dá pra até ouvir a zuada de prego
caindo no asfalto.
Pois
bem: mesmo nesse lugar assim, soturno, tinha uma passageira que
ficava sozinha num dos pontos, sempre perto da meia-noite. Uma
senhora idosa, sentada tranquila no banquinho embaixo do abrigo. Era
bem magra e meio curvada. Toda vez estava com um vestido preto até
os pés, cabelo branco amarrado no alto da cabeça. Levava um
guarda-chuva grande feito uma bengala.
Isso
todas as noites. Ela chamava o coletivo, subia pela porta da frente,
ficava bem quietinha num banco por trás do motorista. Comecei a me
ligar. Reparava quando ela entrava. Depois notei que nunca via aquela
senhora descer. Oxe! Onde, por Jesus, essa criatura desembarcava? E,
com certeza, não ia até o terminal.
Uma
vez, no fim do expediente, comentei o caso com Severo, o motorista.
Ele também ficava de olho na tal idosa, sim. E já havia percebido
que ela não desembarcava em nenhuma parada. Acreditava que era uma
alma de outro mundo!
– Severo,
meu irmão, e você deixa malassombro circular no nosso carro?
– Com
espírito não se mexe, Ademário! Faz de conta que não vê, é
melhor…
Pensa
que me conformei? Arranjei um vidrinho de água benta com o padre na
minha paróquia. Levei comigo para trabalho, bem guardadinho no meu
bolso. Tinha o planejamento completo.
Quando
chegou naquele mesmo ponto, a mulher subiu, andou arrastando os pés
e foi para o banco do qual mais gostava. Então sai da minha cadeira.
Fui bem caladinho, pisando macio pelo corredor do ônibus. Ela não
me via, estava de costas, né? Quando cheguei bem perto da velha,
sacudi a água benta e gritei:
– Vai
em paz, irmã! Volta pra luz!
A
velha se virou para me espiar. O rosto era todo engelhado, os olhos
fundos, o sorriso banguela. Com uma voz arranhada, falou alguma coisa
que não consegui entender. Será que me rogou uma praga? E aí sumiu
na minha frente, cara! Virou fumaça… Juro por Deus, amigo.
Aquilo
foi demais. Pedi demissão no dia seguinte. O que eu faço agora?
Vendo sapato numa loja do Centro. E não ando mais de ônibus nem que
me paguem. Quando meu carro está na oficina, gasto meu salário
todinho em táxi. Pelo menos acho que a praga da velha não pegou. O
problema é que à vezes sonho com ela. A cara cheia de rugas, a boca
murcha, o dedo magro apontando pra mim… Acordo todo suado. Credo em
cruz!
*
Jornalista e pesquisador, autor do livro de contos “Recife
assombrado”.
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