Inconsciente coletivo?
Um
dos tipos de enredo mais fascinantes de se ler – em romances,
contos, novelas ou mesmo em peças de teatro ou roteiro de cinema –
é o que mistura personagens históricos que de fato existiram, e que
marcaram seus nomes na memória dos povos, por todas as gerações
que se sucederam à sua morte, com outros fictícios, criados pelo
autor. É uma literatura, porém, das mais complicadas de se fazer,
pois implica em muita pesquisa (de cenários, vestimentas, falas
etc.) para conferir verossimilhança à história narrada.
São
inúmeros os livros com essas características, tantos que se torna
redundante citar algum. Certamente o leitor terá em mente, e sem
precisar pensar muito, vários deles. Há tempos, por exemplo, venho
ensaiando escrever um conto (cujo enredo tenho na pontinha da
língua), tendo por cenário a cidade de Pompéia e por época, a da
véspera da erupção do Vesúvio que arrasou (assim como a
Herculano) essa localidade romana.
O
que está me travando são os detalhes sobre como os pompeianos
viviam, como eram suas casas, qual sua maneira de falar, vestir,
proceder, quais os assuntos de que tratavam em conversas informais
etc. Com paciência, tenho certeza, a história vai sair, no seu
devido tempo.
Alguns
livros com essas características são tão detalhados, os textos são
tão naturais e espontâneos, que nos fica, até, a impressão que o
autor testemunhou os fatos históricos que fazem o pano de fundo de
seus enredos. Há quem atribua tamanha precisão ao que o célebre
psicanalista Carl Gustav Jung chamou de “inconsciente coletivo”.
Esse
eminente cientista suíço, que devassou a alma humana em busca de
explicações do porque das nossas atitudes e reações, levantou a
tese de que determinadas lembranças de nossos ancestrais seriam
transmitidas à sua descendência (no caso, nós) nos próprios genes
dos descendentes.
Isso
explicaria a sensação que às vezes temos, diante de determinadas
paisagens, por exemplo, de que já estivemos num certo lugar, para
onde na verdade nunca fomos antes, ou que vivemos certos dramas dos
quais acabamos de tomar conhecimento, mas que nos parecem sumamente
familiares. Seria isso? Até pode ser! Atribuo, porém, essa precisão
narrativa, basicamente, ao talento dos escritores.
Querem
um exemplo mais específico desse tipo de enredo em que parece que o
autor presenciou o fato histórico que lhe serve de pano de fundo ou
conheceu pessoalmente o vulto histórico, do qual traça o perfil?
Cito o conto “Um lugar para passar a noite”, de Robert Louis
Stevenson (programado para oportuna publicação em nossa coluna de
finais de semana intitulada “Clássicos”).
Nele,
o autor de “O médico e o monstro” fala do poeta maldito,
François Villon, com tanta naturalidade, que nos deixa a impressão
de haver convivido com ele. Óbvio que não conviveu. Afinal, cerca
de sete séculos separam o nascimento de um e de outro. Além de não
serem contemporâneos, sequer eram conterrâneos. Villon era francês.
Stevenson, por seu turno, nasceu na Inglaterra. A impressão que
fica, contudo, é a de que os dois foram não apenas da mesma época,
mas principalmente amigos íntimos.
Aliás,
sobre o famoso poeta-bandido, recomendo-lhes a leitura de “Balada
dos enforcados e outros poemas”. Dessa forma, poderão conhecer a
genialidade de uma das mais estranhas e contraditórias figuras de
toda a literatura mundial, sobre a qual escrevi o equivalente a um
livro, pelo fascínio que me desperta. Teria convivido com Villon?
Impossível. Algum ancestral meu conviveu? Improvável! Seria fruto
do “inconsciente coletivo”? Quem sabe?
A
propósito do livro recomendado, ressalte-se a primorosa tradução
(e dizer isso chega a ser até redundante face à sua reconhecida
competência) de Péricles Eugênio da Silva Ramos. A obra poética
de Villon foi lançada em 2008 pela Editora Hedra.
Outro
livro, nessa mesma linha, que recomendo sem titubear, é “Os
melhores contos que a história escreveu”, antologia organizada
por Flávio Moreira da Costa, que também redigiu as notas, com a
colaboração de Celina Portocarrero.
É
de se notar o quadro de tradutores, composto por Adriana Lisboa,
Celina Portocarrero, Leo Schlafman, Luís Carlos Cabral, Maria Luizas
X. de A. Borges, Domingos Zamagna, Boris Schnaiderman, Berenice
Xavier, Aleksandar Jovanovic, Marcelo Backes e o próprio Flávio
Moreira da Costa. São 557 páginas da melhor literatura, com o
reconhecido padrão de qualidade da Editora Nova Fronteira.
Aliás,
o melhor conto que li, tendo François Villon por personagem, foi
escrito por um escritor norte-americano um tanto quanto obscuro
(tanto que sequer me lembro seu nome), que publicou a história não
em livro, mas na revista “Mistério Magazine de Ellery Queen”,
que colecionei por cerca de cinco anos.
Procurei
feito um doido o exemplar em que a história está inserida, mas
minha biblioteca está um caos (uma desgraça!), tem excesso de
volumes e todos sem guardar nenhuma ordem lógica. Faço questão,
porém, de, assim que encontrar o texto, escrever uma crônica
inteira a respeito, até por questão de justiça.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Aguçou minha curiosidade.
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