Adalberto
Monteiro, poesia lírica de São Paulo
* Por
Urariano Mota
Sobre o livro “Pé de Ferro e outros poemas”, publicado pela Fundação Maurício Grabois/Anita Garibaldi, neste 2017, tento comentar: cada leitor faz de um livro de poemas o seu livro pessoal, num recorte. Este que segue é o meu.
O poeta Adalberto Monteiro , nascido no Piauí, criado em Goiás, há 15 anos amadurece em São Paulo. E nessa cidade ele redescobre poesia onde muitos imigrantes apenas veem angústia. Isso me espanta, mas é um bom espanto, o de crer que da sua poética vêm lições de vida.
“Pé de Ferro e outros poemas” é um livro para ser lido em casa, no avião, no ônibus ou no metrô. Para ser lido enquanto se bebe sozinho em um bar. E ficar de vez em quando a meditar olhando a janela, o outro lado da rua, cotovelos apoiados em uma mesinha. Para ser lido em todo lugar do cotidiano. Nada solene. Ontem, eu li os poemas pela terceira vez no ônibus que me levava ao barbeiro Carlos, que trabalha no berço que chamam de bairro de Água Fria. Ao chegar à sua barbearia, na Rua da Japaranduba, ao lado do Mercado Público, eu li este poema em voz alta para ele:
“À boca da República...”
E esclareci antes de continuar:
-
Carlos, essa República é o nome de uma grande praça de São Paulo
e de estação de metrô. Escute agora com atenção:
“Até ontem era uma menina.
Está
descalça, mas usa meias,
Que
combinam com a sua calça cáqui.
À
moda dos piratas,
Um
lenço grafite amarrado na cabeça.
Está
suja sim, mas não imunda.
Na
sarjeta, um resto de elegância,
Um
fragmento de vaidade,
Uma
raiz de dignidade.
Um
broto novo da árvore da vida
Tenta
sobreviver às pragas.
Mas
seu corpo esguio tremula muito.
E
no seu rosto belo, moreno,
Há
tanto pânico, tanto medo,
Que
não sei se ela conseguirá.
Uma
brasileira às portas da juventude
Agoniza
À boca da estação República”.
E o melhor barbeiro do Recife, que ninguém sabe, porque ele trabalha em bairro popular, me respondeu:
-
Muito bonito.
Mas ele viu nos meus olhos que a sua frase era insuficiente. Então ele completou:
-
Ele fala muito com poucas palavras. É bonito.
E como se a poesia fosse minha, ele me deu um abraço.
Observo agora nestas linhas que Adalberto Monteiro faz poesia de São Paulo. Quero dizer, com temas e cenários paulistanos ele faz poesia. Para mim, é uma grata surpresa o poeta descobrir lirismo em uma cidade tão inóspita à comunicação humana. Adalberto Monteiro faz poesia como aqui, nestes versos mais que bonitos:
“À
beira do lago,
uma
família operária em piquenique.
A
toalha vermelha
Estendida
no gramado.
O
pai oferece uma coxa de frango
Para uma garotinha que a morde
Com
a melhor boca deste mundo”
Às vezes parece que o poeta não tem o desconforto de São Paulo. É quando ele revela a felicidade naqueles vazios de humanidade, mas tão cheios da felicidade de trabalhadores:
“Na esquina da Eça
Eça
de Queiroz
Esquina
Com a Cubatão.
Domingo.
Na calçada de um bar
Um
filho corta a passarinho
A
metade de um galeto assado.
O velho pai
Enquanto
abastece os copos
Abre
um sorriso.
E o rapaz
É
só felicidade”.
Em mais de um poema, observo em Adalberto Monteiro o mesmo sangue e família do poeta José Amaro, um amigo, militante socialista que perdi. Será que o parentesco vem da ideologia comum a ambos? Ou será, mais precisamente, uma esperança e fraternidade que revê o ruim mas alimenta um futuro que poucos veem?
De José Amaro, lembro um poema como este:
“Vivo semeando o sonho Do fim da pobreza De todas as crianças terem o direito De brincar e sorrir
Vivo a semear o sonho Do nascer igual Perante a natureza dos homens’”.
Em Adalberto Monteiro:
“Desacorrentado,
O cão corre desatinado
E
deixa nas areias da praia
Os
rastros da liberdade”
Do poema “Hugo Chávez” destaco o verso, um raro achado, que utilizei no conto “Um Amor Vermelho como antes” que publiquei na semana passada: “Um rubro roseiral bolivariano”. Aliás, nesse conto me permiti a liberdade de transferir a autoria de um poema inteiro de Adalberto Monteiro para o poeta João, que tentava conquistar o amor da sua maturidade. Foi este:
“Aquilo que amamos
Deposita-se
Do
mais profundo da gente.
E
mesmo que o tempo
Empurre
esse sentimento
Para
o poço
Do
esquecimento,
Um
dia
Como
algo
Que
se desprega
Do
fundo dos oceanos
Ele
salta à superfície”
Penso que falar ou escrever sobre poesia deve ser feito pelo destaque aos poemas que impressionam a sensibilidade da gente. Poderão até dizer “assim é fácil”. Compreendo essa crítica no seu sentido mais negativo. Ela quer dizer “mostre que você é bom na teoria, no verbo, na escrita para falar de um poeta. Mostre que é crítico sério e culto”. Compreendo. Eu, que não sou bom nem razoável de conhecimento erudito, valho-me do que tenho, a saber, uma sensibilidade apenas. Isso por um lado. Por outro, e agora num sentido de quem já passou pela experiência, pergunto aos que me fazem o reparo de pegar o caminho mais fácil. Tentem falar sobre música sem a própria música. Tentem. Tentem falar sobre pintura sem o quadro mesmo. Tentem. E depois, porque semelhante pretensão é irrealizável, perceberão que falar de um poema sem a transcrição do próprio é o mesmo que abrir pano azul sobre o céu azul. Como se o mostrasse mais belo. Algo como obscurecer o extraordinário soneto Só, de Cruz e Sousa. Poesia eterna e única, é impossível escrever melhor sobre o poema, em qualquer língua, a não ser pela transcrição deste grito de revolta:
“SÓ!
Muito embora as estrelas do Infinito
Lá
de cima me acenem carinhosas
E
desça das esferas luminosas
A
doce graça de um clarão bendito;
Embora
o mar, como um revel proscrito,
Chame
por mim nas vagas ondulosas
E
o vento venha em cóleras medrosas
O
meu destino proclamar num grito
Neste
mundo tão trágico, tamanho
Como
eu me sinto fundamente estranho
E
o amor e tudo para mim avaro…
Ah!
como eu sinto compungidamente,
Por
entre tanto horror indiferente,
Um
frio sepulcral de desamparo!”
Assim e fácil, sei que falam. Mas essa é uma facilidade que marca para sempre todo jovem desesperado, desde que o mundo é mundo Assim é fácil. No entanto, é da experiência saber que o lirismo de Adalberto Monteiro se alimentou e se alimenta de outros poetas, dos quais sinto eco em muitos versos. Como estes, de Alberto da Cunha Melo:
“CASA VAZIA
Poema
nenhum, nunca mais,
será
um acontecimento:
escrevemos
cada vez mais
para
um mundo cada vez menos,
para
esse público dos ermos
composto
apenas de nós mesmos,
uns
joões batistas a pregar
para
as dobras de suas túnicas
seu
deserto particular,
ou
cães latindo, noite e dia,
dentro
de uma casa vazia”
Ou na voz de Adalberto Monteiro:
“INDIFERENÇA
Não te entristeças, poeta,
Com
a indiferença e a frieza
Com
que o mundo recebe
Teu
livro novo.....”
Para nossa felicidade, tanto o pernambucano Alberto da Cunha Melo quanto o piauiense Adalberto Monteiro muito se enganam. A sua poesia é para ninguém, somente no sentido de que é para todos.
Os poetas, enfim, nos ensinam muito. Sem Adalberto Monteiro, eu não saberia que é possível o lirismo em São Paulo. Obrigado, poeta. Aprendi que a poesia existe e resiste nos trabalhadores e perseguidos da cidade:
“IBIRAPUERA …
À beira do lago,
uma
família operária em piquenique.
A
toalha vermelha
Estendida
no gramado.
O
pai oferece uma coxa de frango
Para
uma garotinha que a morde
Com
a melhor boca deste mundo”
E me recolho à minha insignificância.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Eu me diverti com a leitura (ainda que a temática dos versos fosse pesada - maravilhosa humanização da Praça República, coisa de gênio), pensei nas mensagens, não precisa ser melhor do que foi.
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