O
mercado da saúde: a loucura e os açougueiros da alma
* Por
José Ribamar Bessa Freire
“Não
há esperança. Só há luta permanente. É essa a nossa esperança”.
(David
Cooper – A Linguagem da Loucura – 1978, p.13).
Na
tenebrosa noite em que o país mergulhou, nem a loucura está a salvo
da ofensiva obscurantista que invade todos os campos da vida social.
Agora, o mercado da saúde no Brasil ressuscita os açougueiros da
alma. Uma simples portaria do Ministério da Saúde, segundo revela a
Folha de SP, quer fazer um grande negócio internando pacientes com
transtorno mental, o que contraria a lei da reforma psiquiátrica de
2001 e a política de Estado que começou a ser implantada nos
últimos trinta anos com o endosso da Organização Mundial da Saúde
(OMS).
O
retrocesso é tão grande que não será surpresa se o Congresso
Nacional revalidar o direito feudal da pernada concedendo aos
empresários o jus
primae noctis com
a noiva de seus trabalhadores,ou
se o ministro da saúde, Ricardo Barros (PP vixe vixe), condecorar o
fascista Egas Moniz, aquele neurologista português que inventou a
lobotomia – uma técnica cirúrgica criada em 1935 para transformar
em “vegetal” quem apresentar sintomas de patologia psiquiátrica,
seja lá o que isso signifique. E isso não é piada.
Nesse
andar da carruagem, o ministro é capaz de importar dos Estados
Unidos o lobotomóvel - unidade móvel que nos anos 1940 percorria
aquele país, mutilando as pessoas classificadas como loucos,
homossexuais, esquizofrênicos ou quem sofria de ansiedade, insônia,
depressão e até crianças acusadas de mau comportamento. Vários
filmes exploraram ficcionalmente o tema, entre os quais “Um
Estranho no Ninho” com
Jack Nicholson e “Stars
in My Pocket Like Grains of Sand”
no qual o personagem é lobotomizado para aceitar docilmente sua
condição de escravo.
Envelhecendo
o cérebro
David
Cooper, teórico do movimento da anti-psiquiatria que questiona o
conceito de alienação mental, conta que num hospital da Inglaterra
onde ele trabalhou, um psiquiatra famoso sonhava com uma droga capaz
de envelhecer o cérebro, sob a justificativa de que pessoas com o
cérebro envelhecido deixavam de encher o saco dos outros. “Os seus
desejos foram rapidamente realizados a partir de 1955 com as
fenotiazinas (largactil, etc) e depois, mais tarde, com o
haloperidol” – escreve ele.
No
mundo todo houve forte reação contra o tratamento dos enfermos em
instituições psiquiátricas, que eram lugares de tortura e de
repressão e não de cura. Na Itália, a luta antimanicomial
encabeçada pelo psiquiatra Franco Basaglia revelou que a internação
em manicômios e o isolamento pioravam a condição dos pacientes.
Com o aval da OMS, ele propôs a reforma no sistema de saúde mental
e a criação de centros comunitários e centros de convivências no
lugar dos hospícios.
No
Brasil, trabalhadores em saúde mental e familiares de pacientes se
inspiraram na Itália para reivindicar a abolição dos manicômios e
a reforma no modelo de tratamento. O encontro nacional em Bauru (SP)
realizado em 18 de maio de 1987 – declarado Dia de Luta
Antimanicomial - condenou esse tratamento carcerário de quem sofre
transtorno psíquico e aprovou a proposta de que o Estado não pode
construir e nem contratar serviços de hospitais psiquiátricos,
devendo substituir as internações por atendimentos comunitários,
com a participação da família.
Duas
leis federais regulamentaram o funcionamento da rede de atenção à
saúde mental. Lobotomia e choque elétrico, nunca mais! Nada de
envelhecer o cérebro e de internações arbitrárias. Enquanto
desativava manicômios, o Ministério da Saúde incentivava o
atendimento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) criados em
1992, que passaram a oferecer tratamentos intensivos, semi-intensivos
e não-intensivos de acordo com cada caso, se responsabilizando,
quando necessário, pelo encaminhamento do paciente para leitos de
saúde mental na rede hospitalar.
As
internações compulsórias ficaram proibidas a partir de 2001,
quando a Lei Paulo Delgado foi promulgada, garantindo aos pacientes
tratamentos menos invasivos e protegendo-os dos abusos e maus-tratos.
Cerca de 75% dos recursos antes desperdiçados em manicômios,
foram redirecionados para quase 3.000 serviços extra-hospitalares,
“que ajudam homens e mulheres a encontrar saúde mental e
felicidade lá onde ela pode estar, no cotidiano da vida em
comunidade”.
Luta
antimanicomial
Agora,
dezesseis anos depois da reforma, o Ministério da Saúde prepara
portaria (Folha SP 13/12) que propõe não apenas interromper o
fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos, mas incentiva os
internamentos ao aumentar o valor pago por diária nesse tipo de
serviço que sobe de R$ 30 para R$ 70 reais. Até então, informa a
matéria assinada por Natália Cancian, o número de leitos vinha
diminuindo, caindo de 53 mil para 18 mil entre 2002 e 2015.
-
“É a maior ameaça à política de saúde mental desde 1990” –
declarou o psiquiatra Leon Garcia do Instituto de Psiquiatria da USP.
Concordam com ele o neurologista Domingos Alves e os psiquiatras
Pedro Delgado e Roberto Kinoshita, ex-coordenadores de Saúde Mental
nos Governos Collor, FHC, Lula e Dilma. Os três assinaram o artigo
“Retrocesso na saúde mental?” (FSP 14/12) no qual afirmam que “o
ministro da Saúde não pode desfazer numa canetada uma política de
estado amparada pela legislação federal, pelo controle social do
SUS e mundialmente reconhecida por seus resultados”.
-
Foi com espanto que soubemos que o atual ministro pretende mudar por
meio de uma portaria a política de saúde mental que atravessou
todas as gestões do Ministério da Saúde desde 1990, após 11 anos
de debates no Congresso – escrevem os três ex-coordenadores, que
atuaram em diversos governos com o predomínio de diferentes
partidos.
O
engenheiro Ricardo Barros, ministro da Saúde, para quem “os
pacientes do SUS inventam doenças”, terá forças para ressuscitar
o lobotomóvel? Se ficarem inventando doenças, lobotomia neles, de
preferência a variante concebida pelo cirurgião americano Walter
Freeman: com um martelo, ele introduzia diretamente no crâneo do
paciente um picador de gelo, rodando-o depois para destruir o mal
pela raiz. Não curava, mas pelo menos o doidinho, neutralizado, não
enchia mais o saco de ninguém.
No
Amazonas, a luta antimanicomial, cujas conquistas estão ameaçadas,
foi encabeçada pelos saudosos Rogélio Casado e Silvério Tundis, já
falecidos, e por Manuel Dias Galvão, que devem ser aqui lembrados
para combatermos o fantasma do Walter Freeman e a política
desastrosa do atual ministro da Saúde. É preciso continuar a luta.
Não podemos permitir que para engordar o mercado da saúde se
aumente o sofrimento e a solidão dos pacientes com transtornos
mentais. Como sinalizou David Cooper “É
essa a nossa esperança. É essa uma primeira frase, na linguagem da
loucura.”.
* Jornalista e historiador.
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