Meu
cachorro Atahualpa (1)
* Por
Urda Alice Klueger
(Para
Bartolomeu Moreira Monteiro)
Penso
que, no mundo dos cachorros, Atahualpa às vezes aparece como um
cachorro exibido, como algumas crianças que viajam para a Disney e
depois ficam se pavoneando na escola, cheias de importância, diante
de amiguinhos que talvez só foram ao Beto Carrero1
ou talvez nem lá foram.
É
que Atahualpa é um cachorro de apartamento, e no condomínio onde
moro, que tem 64 apartamentos, deve ter pelo menos uns 40 cachorros
(mais dois gatos e dois papagaios, quanto sei), e tirando um outro
cachorro que anda até de moto, Atahualpa foge inteiramente ao modelo
“cachorro de apartamento”. Desde o primeiro dia que chegou que
eu o levo por todos os lados onde posso, deixo-o correr livre pela
natureza, acampo com ele, deixo-o comer tudo o que um cachorro pode
comer. Ouço horrorizadas expressões de gente moderna, que tem
cachorros modernos, movidos à ração:
-
Não se pode dar nada além de ração aos animaizinhos! Leite, nem
pensar! Tu estás louca – leite lhes dá dor de barriga!– e então
lembro dos cachorros da minha infância, que comiam arroz, feijão,
salada e carne, como todo o mundo, e aipim com molho, ou pão com
manteiga ou sem manteiga, ou fosse lá o que fosse, e viviam longas
vidas de 15, 20 anos, o que é velhice extremada para um cachorro. E
deixo Atahualpa comer de tudo (em uma das refeições do dia faço
questão que ele coma ração, tipo complemento alimentar, assim como
as mães fazem as crianças tomarem complexos vitamínicos), e ele
começa o dia querendo bolo com leite, bem misturadinho, amassadinho,
para não ter o trabalho de mastigar. Há que ser bolo, pois pão,
para ele, exibido como é, nem pensar – se bem que noutro dia, num
camping, apareceu um cachorro faminto que devorou quase todo o pão
que eu tinha, e então, na coisa da competição, Atahualpa se tomou
de amores pelo pão, e comeu pão seco com o maior apetite e a maior
voracidade. Tirando tais exceções, no entanto, há que ser bolo, e
virei uma formiga carregadeira a trazer bolos ingleses do
supermercado, sendo que eu quase nunca como bolo e Atahualpa tenha
definida preferência pelo bolo inglês, que num instantinho some da
embalagem, diante do apetite dele.
Ele
adora carne, claro, mas peixe, nem pensar. De peixe, a única coisa
que gosta é de lagoas de peixe, onde há plantas aquáticas que ele
ataca aos latidos, agarra-as com os dentes, acaba por mergulhar na
água, e sabe como é, lagoas de peixe normalmente têm um certo
cheiro característico, e depois de tais mergulhos, há que se levar
Atahualpa para casa e botá-lo debaixo do chuveiro, outra coisa
inconcebível para cachorros de apartamentos, que tomam banho em
pet-shops
sofisticados, são secados com secador e cortam as unhas com
tesourinha. Só uma vez um veterinário se meteu à besta e andou
cortando as unhas do meu cachorrinho – nunca mais tal ato se
repetiu. As unhas de Atahualpa se gastam de tanto andar e correr,
seja no cimento das calçadas, seja nos amplos espaços da Natureza,
como na beleza desta pousada onde estou nesta sexta-feira-santa, com
direito a lagoa de peixe, rio, matas e campinas de grama com muitas
flores, e ontem à noite Atahualpa chegou de volta tão molhado e tão
cheio de carrapichos, que um dos olhos dele nem abria, tantas foram
as camada de carrapicho que foram se sobrepondo umas às outras na
sua peluda cara de cachorro safado, e eu tive que ajudá-lo a livrar
o olho e o resto do pelo,
e ele estava com tamanha fome que devorou um pote de ração sem o
menor constrangimento, ele que faz todo o tipo de frescura para comer
só bolo e carne.
Diria
que Atahualpa é um cachorro feliz, enquanto o observo, neste
momento, em correria e lutas com uma cachorra adulta daqui da
pousada, um feixe de músculos a corcovear pela grama, ao lado da
lagoa de peixes, coisa que não seria admitida pelos donos dos seus
colegas ”de apartamento”. É por isto que digo que acho que ele
deve se comportar muito exibidamente diante da sua turma, tipo
aquelas crianças que viajam para a Disney e que depois se acham mais
importantes que as outras nas salas de aula. Também, pudera! Quantos
cachorrinhos tem a vida que ele tem?
Blumenau,
21 de Março de 2008
1.
Beto Carrero: Parque temático onde adultos e crianças se divertem,
no Estado de Santa Catarina/Brasil.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
.
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