Ensino
religioso ou ensino das religiões e iniciação à vida do espírito?
* Por
Leonardo Boff
Corre
no STF a discussão se nas escolas, pode ou não haver ensino
religioso. O termo “ensino religioso” leva a equívocos pois
contém uma conotação confessional. Num Estado laico como o
brasileiro, que acolhe e respeita todas as religiões sem aderir a
nenhuma delas, o correto seria dizer “ensino das religiões”.
Pertence à cultura geral, que os estudantes tenham noções básicas
das religiões praticadas na humanidade. Tal estudo possui o
mesmo direito de cidadania que o da história universal ou das
ciências e das artes. O termo correto seria, portanto, o “ensino
das religiões”.
Entretanto,
o mais importante seria iniciar os estudantes na espiritualidade como
é entendida hoje pelos estudiosos. Não se trata de uma derivação
da religião, o que pode ser, mas esta não possui o monopólio da
espiritualidade. A espiritualidade é um dado antropológico de base
como é a inteligência, a vontade e a libido.
O
ser humano além de possuir uma exterioridade (corpo) e uma
interioridade (psiqué), possui também uma profundidade (espírito).
O espírito é aquele momento da consciência em que cada um se capta
a si mesmo como parte de um todo e se pergunta pelo sentido da vida e
de seu lugar no conjunto dos seres.
Talvez
melhor que um filósofo, um escritor nos possa esclarecer o que seja
o espírito e a vida do espírito. Antoine de Saint Exupéry, autor
do Pequeno Príncipe, deixou uma carta póstuma de 1943 e
somente publicada em 1956. Intitulava-se “Carta ao General X”. Ai
escreveu:”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que
há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da
inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano”(Dare un
senso a la vita, Macondo Libri 2015 p. 31).
Para
ele, a vida do espírito ou a espiritualidade é feita de amor, de
solidariedade, de compaixão, de companheirismo e de sentido poético
da vida. Se esta vida do espírito fosse cultivada, não haveria o
absurdo dos milhões de mortos na segunda guerra mundial. É o que
mais faz falta hoje no mundo. Pelo fato de a vida do espírito vir
coberta por um manto de cinzas de egoismo, indiferença, cinismo e
ódio é que as sociedades se tornaram desumanas. Saint Exupéry
chega a dizer:”temos necessidade de um deus”(p.36).
Esse
Deus não vem de fora. Ele é aquela Energia ponderosa e amorosa que
os cosmólogos chamam de Energia de Fundo do Universo, inominável e
misteriosa da qual saíram todos os seres e são sustentados, a cada
momento, por ela. E nós também. Cosmólogos como Brian Swimme e
Freeman Dyson chamam de Abismo Alimentador de Tudo ou de Fonte
Originária de todos os Seres. Deus deve ser pensado nesta linha.
É
próprio da vida do espírito poder abrir-se a essa Realidade,
deixar-se tomar por ela e entrar em diálogo com ela. O resultado é
ter uma experiência de transcendência, sentindo-se mais sensível e
humano.
Há
uma base biológica para a vida do espírito. Neurocientistas,
a partir dos anos 90 do século passado, constataram que sempre que o
ser humano aborda temas ligados a um sentido profundo da vida e ao
Sagrado. verifica-se uma grande aceleração dos neurônios dos lobos
temporais. Chamaram a isso “o ponto Deus no cérebro”. Assim como
temos órgãos exteriores como os olhos, os ouvidos e o tato, temos
também um órgão interior, que é nossa vantagem evolutiva, pela
qual captamos essa Realidade misteriosa que nos circunda e tudo
sustenta.
Deter-se
sobre esta Realidade e entrar em diálogo com ela, nos torna mais
humanos, menos violentos e agressivos. Danah Zohar, física quântica
e seu marido psiquiatra Ian Marshall, escreveram um convincente
livro sobre o “ponto Deus no cérebro” denominando-o de
“inteligência espiritual”(Record, Rio 2000). Assim somos dotados
de três tipos de inteligência: a intelectual, a emocional e a
espiritual. Cumpre articular as três para sermos mais plenamente
humanos.
Estimo
que as escolas além de fornecer um ensino das religiões, ganhariam
enormemente se iniciassem os estudantes na vida do espírito. Quem
estaria apto para orientar esta prática? Professores de psicologia,
de pedagogia, de filosofia e de história. A aula poderia ser
dividida em duas partes: nos primeiros vinte minutos pequenos grupos
discutiriam um tópico de algum mestre do espírito de distintas
procedências. Procurariam internalizar tais conteúdos. Nos outros
vinte minutos seria colocar em comum o que refletiram e abrir um
debate aberto.
Como
alternativa, pode-se também reservar um tempo para cada estudante
recolher-se, auscultar sua profundidade e ver o que daí sai: bons e
maus sentimentos, conhecendo-se a si mesmo e propondo-se a fortalecer
os bons e colocar os maus sob controle. Assim sentiria a vida
do espírito, consciente e pessoal.
Temos
como matar a fome de pão. Precisamos matar a fome de vida
espiritual, que se nota por todos os lados. Ela “seria a única a
satisfazer o ser humano”.
*
Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o
ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a
vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes
(2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com
Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on
transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz”
(Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em
Cancun, no México.
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