Seja
feliz, tome remédios
* Por
Frei Betto
A
felicidade é um produto engarrafado que se adquire no supermercado
da esquina? É o que sugere o neoliberalismo, criticado pelo clássico
romance de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo” (1932). A
narrativa propõe construir uma sociedade saudável através da
ingestão de medicamentos.
Aos
deprimidos se distribui um narcótico intitulado “soma”, de modo
a superarem seus sofrimentos e alcançar a felicidade pelo controle
de suas emoções. Assim, a sociedade não estaria ameaçada por
gente como o atirador de Las Vegas.
Huxley
declarou mais tarde que a realidade havia confirmado muito de sua
ficção. De fato, hoje a nossa subjetividade é controlada por
medicamentos. São ingeridos comprimidos para dormir, acordar, ir ao
banheiro, abrir o apetite, estimular o cérebro, fazer funcionar
melhor as glândulas, reduzir o colesterol, emagrecer, adquirir
vitalidade, obter energia etc. O que explica encontrar uma farmácia
em cada esquina e, quase sempre, repleta de consumidores.
O
neoliberalismo rechaça a nossa condição de seres pensantes e
cidadãos. Seu paradigma se resume na sociedade consumista. A
felicidade, adverte o sistema, consiste em comprar, comprar, comprar.
Fora do mercado não há salvação. E dentro dele feliz é quem sabe
empreender com sucesso, manter-se perenemente jovem, brilhar aos
olhos alheios. A receita está prescrita nos livros de autoajuda que
encabeçam a lista da biblioterapia.
Se
você não corresponde ao figurino neoliberal é porque sofre de
algum transtorno. As doenças estão em moda. Respiramos a cultura da
medicalização. Não nos perguntamos por que há tantas enfermidades
e enfermos. Esta indagação não convém à indústria farmacêutica
nem ao sistema cujo objetivo primordial é a apropriação privada da
riqueza.
Estão
em moda a síndrome de pânico e o transtorno bipolar. Já em 1985,
Freud havia diagnosticado a síndrome de pânico sob o nome de
neurose de angústia. O transtorno bipolar era conhecido como psicose
maníaco-depressiva. Muitas pessoas sofrem, de fato, dessas
enfermidades, e precisam ser tratadas e medicadas. Há profissionais
que se sentem afetados por elas devido à cultura excessivamente
competitiva e à exigência de demonstrar altíssimos rendimentos no
trabalho segundo os atléticos parâmetros do mercado.
Em
relação às crianças se constata o aumento do Transtorno por
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Ora, é preciso
cuidado no diagnóstico. Hiperatividade e impulsividade são
características da infância, às vezes rebaixadas à categoria de
transtorno neurobiológico, de desordem do cérebro. Submeta seu
filho a um diagnóstico precoce.
Quando
um suposto diagnóstico científico arvora-se em quantificar nosso
grau de tristeza e frustração, de hiperatividade e alegria, é
sinal de que não somos nós os doentes, e sim a sociedade que,
submissa ao paradigma do mercado, pretende reduzir todos nós a meros
objetos mecânicos, cujos funcionamentos podem ser decompostos em
suas diferenças peças facilmente azeitadas por quilos de
medicamentos.
*
Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou”
(Saraiva), entre outros livros.
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