Uma
viagem a bonde
* Por
Graciliano Ramos
Na
grande cidade, plana, montanhosa, rica, miserável, cheia de hiatos,
horrores e belezas, o viajante da província, chegado há pouco num
vaporzinho ronceiro, coleciona surpresas e contradições. O morro
pitoresco visto de longe, verde e pedregoso, coberto de tábua e
lata, parece baixar-se de repente, alargar-se na planície. É uma
elevação quase imperceptível, sem verdura nem pedra, mas lá
fervilha uma sociedade como a das grandes alturas, das ladeiras
íngremes e ziguezagueantes. A favela desceu; torcem-se becos na
areia, labirinto complicadíssimo. As árvores do Jardim Botânico
erguem-se na vizinhança. As casas próximas cresceram e tornaram-se
palacetes, o arranha-céu baixa a cabeça e espia, constrangido, a
vermina que lhe formiga os pés. Rolam ônibus e meia dúzia de
passos. E ali, na tábua dura e na lata enferrujada, Aurora se
contempla num pedaço de espelho, seu Oscar arranca tristezas do
pinho, os meninos de seu Oscar pegam vasilhas e vão mendigar água
nos corredores.
O
viajante estira o pescoço, desvia-se do jornal, larga Churchill e
Hitler, faz reflexões ponderosas, receita mentalmente remédios
enérgicos e paliativos, logo esquecidos. Saiu do hotel pela manhã
e, atordoado por estranhos rumores, gritos de choferes e buzinar de
automóveis, incorporou-se na multidão e foi estudar topografia.
Como na terra dele se diz que todo o caminho dá na venda, achou
desnecessário munir-se de carta: entrou num veículo e rodou para o
sul.
Apeou-se
em Copacabana, onde viu numerosas criaturas de roupas escassas
banhando-se ou lagarteando, estateladas. Afastou-se, repeliu
severamente aquela nudez e aquela mistura, foi descansar nos bancos
da praça, ver as palmeiras, o coreto. Voltou a examinar os
banhistas, dobrou esquinas, circulou na praia e nas vias interiores,
admirou a altura dos prédios, o tamanho dos elevadores e os cartazes
dos cinemas. Desnorteado, meteu-se num bonde e distraiu-se algum
tempo olhando as placas das ruas compridas. Saltou no fim de Ipanema,
tomou outro bonde e, atraído por uma espaventosa manchete, pôs os
óculos e começou a ler disfarçadamente, com o rabo do olho, o
jornal dum companheiro de banco. Entreteve-se atentando na favela.
Agora
repousa a vista numa longa fileira de bangalôs tranquilos, decentes,
meio ocultos em vegetais educados nos limites impostos pela tesoura
do jardineiro, plantas desambiciosas, chinfrins e burocráticas.
Algumas crianças patinam moderadamente na calçada; com certeza
mamãe, lá dentro, manipula os vestidos das pequenas; papai
chateia-se na repartição. Ordem. Parece que as coisas vão direito.
Não há motivo para desgosto. O nosso passageiro esfrega as mãos.
Por que esse barulho todo na Europa, essa fúria, essa doidice? De
fato há pessoas exigentes, milhões de pessoas exigentes e mal
intencionadas.
Rua
Voluntários da Pátria, bonito nome. Não morava aqui o Oswaldo
Cruz? É, morava. Que bagunça, pai do céu! Tempo esquisito! Berros
no Congresso, artigos medonhos, fuzuê, gente morrendo por causa da
vacina. Hoje não há disso, graças a Deus. A imprensa é razoável,
somos todos razoáveis, e os discursos, no rádio, perderam a
eficácia.
Parada
no Pavilhão Mourisco, cinco minutos junto à fonte vazia e suja.
Nova mudança de veículo.
Bem.
Isto por aqui deve ser Botafogo, não? Leituras antigas auxiliam o
provinciano. Antigas e recentes. Botafogo, sem dúvida. Que é da
placa? Vive ali uma das personagens do sr. Gilberto Amado. Onde
ficarão as palmeiras? O homem conhece a boa literatura. Instituto
Juruena. Naquele jardim o sujeito do paraquedas se esborrachou.
Caíram na vizinhança pedaços do aeroplano onde viajava o ministro
de Cuba. Escangalharam-se dois aviões e uns dez indivíduos
entregaram a alma a Deus, mas só nos lembramos do dr. Catá. O resto
sumiu-se, como os paraquedistas metralhados e os marinheiros que
afundam.
Marquês
de Abrantes. Quem terá sido o marquês de Abrantes? O passageiro
ignora muitos patronos das vias públicas, o que não o inibe de
respeitá-los.
Numa
praça miúda, com folhas de papel na mão, José de Alencar está
sentado em posição ridícula. Muito grande, José de Alencar.
Necessário melhorar-lhe a estátua. O Guarani, que poucos leram e
todos admiram, há de tornar-se um livro fundamental, maior que Os
Sertões. Falta uma estátua de Euclides da Cunha: cidadão deste
século, ainda não amadureceu convenientemente.
Rua
Machado de Assis. Ah! Esse era enorme e continua a crescer. Superior,
infinitamente superior a Eça de Queirós. Precisamos afirmar isto.
Sem comparação não há grandeza. Só Deus é Deus e Maomé é o
seu profeta.
Lá
está o Catete. Sim senhor é ali. Nos arredores, a casa de móveis
do judeu, literatos padecendo no fundo de pensões ordinárias,
bodegas de frutas, as meninas de Rubem Braga, em chinelos,
transitando na calçada. Muito democrático.
Pouco
adiante, o relógio da Glória e o combate nos tempos pré-históricos,
divulgados nas estampas que enfeitam peças de fazenda barata, no
interior. Estamos chegando.
O
Passeio Público encolheu-se e pedirá demissão qualquer dia. O
Monroe. Para quê? Chi! Quanto cinema! A Biblioteca Nacional e,
defronte, o monumento de Floriano com diversos atavios,
Y-juca-pyrama, O Caramuru e outras habilidades.
O
viajante desce do carro e mergulha no apertão da Avenida,
morrinhento, encharcado de suor. Depois dará uma volta por Engenho
de Dentro ou pelo Méier. Mas isto é província. Por enquanto
precisa recolher-se, deitar-se.
25
de maio de 1941
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IN:
RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas. Rio de Janeiro: Record, 2013,
p.356-360.
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Romancista,
cronista, contista, jornalista, político e memorialista.
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