Entrar na pele do outro
* Por
Risomar Fasanaro
Minha amiga Dina me envia uma
linda mensagem em que declara que precisa ler para sentir que “tudo
parece inteiro”. Diz que precisa “entrar na vida do outro, nas
palavras do outro, viver com e pelo outro, distanciar-se de si mesma,
da sua trajetória (sempre inacabada), seguir o caminho do outro...”.
Mergulho em suas palavras e me
pergunto: será que a maioria das pessoas não é assim? Não sei se
mais feliz, mas acho maravilhoso embrenhar-me nas matas com Riobaldo
e Diadorim; quando sinto a terra do sertão mineiro, ouço a conversa
dos dois, percebo a tentativa inútil de esconder o amor que um sente
pelo outro. Como sou feliz quando sinto o cheiro do mato, o roçar
dos galhos nos meus braços, ouço o canto dos pássaros, vivo a
paixão que se enreda nas entrelinhas dos diálogos, quando me
detenho no olhar de Riobaldo pousado em Diadorim, e sinto as emoções
que eles sentem.
Faço isso com tamanha
verdade, que lendo também não sou mais eu. Quantas vezes, de salto
alto sou Sinhá Vitória, tropeçando, sem andar direito nessa cidade
grande... Quantas vezes não me oprime o peito à espera da chuva, à
minha impotência diante da ausência de caminhos. Busca tão difícil
quanto a dela diante da seca?
E quantas vezes sou Macabéa,
um dinossauro na Avenida Paulista, chegando do Recife com aquela
pureza, aquela ingenuidade, aquele desarmamento diante da vida.
Frequentemente Precisando tomar um analgésico, para ver se diminui a
dor de viver.
É... viver é difícil,
talvez por isso a gente se refugie na pele do outro, ainda que esse
outro muitas vezes sofra tanto ou mais do que nós...
Macabéa, por exemplo, me
comove até as lágrimas. Quando releio “A
Hora da Estrela”
sinto vontade de sentar em um banco de alguma praça e colocá-la
no colo, de embalar Macabéa, cantando “Terezinha”
do Chico Buarque, até que ela durma.
Por causa desse mergulho, já
tentei três vezes ler “Crime e Castigo”
de Dostoievski, “Os
Subterrâneos da Liberdade”
de Jorge Amado e “Memórias
do Cárcere”
de Graciliano Ramos. Fico acanhada quando me perguntam o que acho
dessas obras. Nada, não acho nada porque nunca consegui passar da
página vinte. Isso é grave? Sim, para uma professora de literatura
é mais do que grave, é gravíssimo, mas que fazer? Não consigo...
Relembro o susto que tomei no
dia em que estava eu “posta
em sossego”
lendo “Grande
Sertão: veredas”
de Guimarães Rosa. De repente Diadorim leva um tiro e Riobaldo lhe
abre a camisa para tentar salvá-la
e vê os seios dela, descobre que Diadorim é uma mulher. Meu susto
foi tamanho que quase tive um peripaque, e a tristeza, a dor que
senti foi tão grande que poderia compará-la
próxima a de Riobaldo.
Parto para a poesia e releio
“O
Caso do Vestido”
de Drummond. Fico revoltada com a mansidão daquela mulher a viver a
solidão desamados, a guardar o vestido da amante do marido pendurado
atrás da porta como a refazer todos os dias o caminho daquele que a
traiu.
Cansada daquela resignação,
releio “O
Rio”
de João Cabral. Quanta seca, quanta fome, quanta miséria. É...
parece que a literatura, com poucas exceções, é parente do
jornalismo: se faz com notícia ruim. E que contradição: poucas
coisas na vida nos proporcionam tamanho prazer.
Nunca tomei LSD, nem cheirei
cocaína, mas duvido que alguma droga proporcione o maravilhamento
que um bom livro nos traz. Duvido.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e
escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra
vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto
por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.
Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
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