A
leitura do corpo
* Por
Harry Wiese
Quando
eu era criança ler tinha um significado só e significava decifrar a
escrita. Quem não conseguia tal façanha era chamado de analfabeto.
Hoje, ler possui um leque de significados, que nos permite
interpretar e entender melhor o que nos rodeia, o que somos e como
assimilamos as diversas modalidades de textos. Somos texto. As
pessoas são textos, portanto, podem ser lidas.
O
cronista Affonso Romano de Sant'Anna disse que tudo
é leitura. O corpo é um texto e que tudo é decifração, portanto,
conclui-se que o corpo é um texto e pode ser decifrado.
Existem
estudos avançados sobre a corporeidade. Hugo Assmann é uma dessas
personalidades. “Metáforas novas para reencantar a educação” é
uma obra que não deveria faltar na lista de leituras de professores
e educadores. Corporeidade é a maneira pela qual o cérebro
reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo.
Se
meu corpo é texto eu me leio. Leio-me por dentro e por fora, cada
detalhe, cada atitude, cada célula, cada pensamento. Penso, logo
leio! A leitura do corpo é a existência, Descartes que o diga!
A
primeira leitura do corpo compete à mãe. É ela que lê os
movimentos do feto, suas manias e artimanhas, a vida. Não lê com os
olhos, lê com o corpo o filho se formando dentro dela.
Depois
com a criança nascida, ela a lê nos mínimos detalhes, parte por
parte, órgão por órgão e descobre o primeiro sorriso, a alegria,
a tristeza, a fome, a satisfação e o amor. Mães são exímias
leitoras do corpo.
O
pediatra lê o corpo de jeito superior. Lê a dor e o alívio da dor
das crianças e das mães das crianças. Pediatras são como anjos da
guarda em noites de tempestades turbulentas.
Os
professores leem o corpo de seus alunos. Cada aluno é um texto
exclusivo. A leitura dos corpos dos alunos permite ler o mundo de
cada um deles: a família, a comunidade, as crenças, as necessidades
e as diferenças. Leem, principalmente, as ausências, a índole e os
sonhos. Ler sonhos é essencial. Ninguém pode ser menor que os
sonhos, disse o poeta.
O
psicólogo lê o corpo por dentro. Lê o que não vê. Vê o corpo e
lê a alma. Psicólogos são como aves noturnas, silenciosas e
eficientes na leitura de seus caminhos. Freud era exímio leitor de
almas através de sua psicanálise. Ele disse: “Existem momentos na
vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem
inúteis, e, por mais que a gente pense em uma forma de empregá-las
elas parecem não servir. Então a gente não diz, apenas sente”.
Afagos
entre mães e filhos e carícias entre amantes são leituras como em
Braille, com suas depressões e seus altos-relevos, descartam
palavras, para que palavras, se o texto são os corpos.
Médicos
são eficientes leitores de corpos. São especialistas nesse tipo de
leitura. Desde Hipócrates, o pai da medicina, os médicos leem os
complicados predicados corporais para conseguir o bem-estar da
humanidade. Médicos deveriam ter existência infinita.
O
médico-legista faz a leitura do corpo morto. Não sorri como o
pediatra. Faz a leitura da causa última. As causas-mortis são
inúteis e só servem para documentos, que também são inúteis. A
inutilidade dos corpos se manifesta em suas decomposições
irreversíveis.
Mesmo
assim, há ainda a leitura do corpo morto, frio, sem alma, o último
olhar, a despedida. A imagem perdura na mente das pessoas ainda por
algum tempo e a cada dia que passa corrói e definha. A lápide de
mármore é o limite e encerra a leitura do corpo. Permanece a
saudade... que não pode ser lida!
*
Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de
vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela
Academia Catarinense de Letras.
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