Renascimento diário
* Por
Pedro J. Bondaczuk
O
homem, sem que o perceba ou se dê conta, morre a cada dia para em
seguida renascer. Daí não ser tão mitológico assim o mito da
fênix, aquela ave egípcia que renasceria de suas próprias cinzas.
A cada dia, somos os mesmos e no entanto somos um outro.
Todas
as células do organismo, sejam de que tecido forem, se "autocopiam",
através da reprodução, passando para as sucessoras todas as
informações de que dispunham. A cada manhã, portanto, somos
pessoas renovadas, inclusive do ponto de vista físico. Em termos
mentais, nem se diga. Mudamos a cada instante. E infeliz daquele que
não muda nunca, que se aferra a dogmas, a comportamentos superados
pelo tempo, a maneiras arcaicas de pensar e de agir.
Ninguém
"renasce" das próprias cinzas com maior intensidade e
força do que o artista e, mais ainda, do que o poeta. O filósofo
francês Gaston Bachelard, no livro "Fragmentos de uma poética
do fogo", sentencia: "Sem a ajuda do mito antigo, a fênix
renasce sem parar nos poemas. A fênix é um arquétipo de todos os
tempos. É um fogo vívido, pois não se sabe jamais se adquire seu
sentido nas imagens do mundo exterior ou sua força no fogo do
coração humano".
Essa
ave mitológica chega a ser emblemática em minha vida. Além do
renascimento diário biológico, supracitado, tenho em minha
experiência pessoal de quase 75 anos de existência outros: o
social, o moral, o profissional, o psicológico, o artístico etc.
Foram
inúmeras as vezes em que estive em situações tão difíceis a
ponto de parecer irremediavelmente batido, virtualmente morto para o
mundo e para a sociedade. No entanto, ou por méritos próprios –
sempre contando com a providencial ajuda alheia – ou em decorrência
do acaso, "renasci" inesperadamente.
Por
exemplo, quando fiquei paralítico, fui rejeitado pela própria
família, que não se conformava em ver uma criança bonita e sadia
da noite para o dia ficar deformada e sem capacidade de locomoção
própria. Foram inúmeras as ocasiões em que desejei até mesmo
morrer, inconformado com aquela condição que julgava injusta. Claro
que guardava para mim mesmo essas emoções tão amargas. Face aos
outros, procurava comportar-me como se a doença não tivesse abatido
o meu ânimo. Mas abatera.
Todas
as vezes em que via outros meninos jogando bola, correndo, saltando,
empinando papagaio e fazendo tudo o que eu não podia fazer, tinha
uma vontade imensa de chorar. Mas engolia o choro e fazia uma cara
alegre, ou de um bobão que não tivesse consciência das limitações.
Claro que tinha!
Não
se tratava de inveja. Era a revolta compreensível de uma criança
saudável e inteligente, inconformada com uma "punição"
por alguma coisa que não havia feito. E no entanto, superei essa
fase. Aprendi a andar, a fazer praticamente tudo o que as outras
pessoas fazem, a ser autossuficiente. Consegui enxergar além da
condição física, do aspecto antiestético, dos preconceitos
sociais.
Tive
a felicidade de contar com oportunidades. Algumas, agarrei com unhas
e dentes e mudei meu destino. Outras, por imaturidade, deixei escapar
por entre os dedos. Renasci das minhas próprias cinzas e consegui me
aceitar do jeito que sou, embora não encontrasse a mesma aceitação
em todos os ambientes em que estive.
Por
isso, o mito da fênix me é emblemático. Por uma dessas
coincidências que quando ocorrem nos deixam em dúvida a respeito da
existência ou não de um determinismo em nossa vida, fui admitido em
uma instituição que tem nessa ave mitológica o seu símbolo: a
Academia Campinense de Letras.
Não
bastasse isso, fui honrado com um título de cidadania, por parte da
Câmara Municipal de Campinas. Tornei-me cidadão campineiro por lei,
já que por nascimento não me foi possível. Já o era, na verdade,
por opção, pelo coração, através da emoção, do amor que nutria
por esta comunidade e sua gente, embora não fosse reconhecido como
tal.
Pois
bem, o brasão da cidade tem exatamente a fênix renascendo das
cinzas, como esta metrópole renasceu, após o surto de febre amarela
de meados do século XIX, que dizimou quase toda a sua população.
Profissionalmente, foram inúmeras as ocasiões em que "caí em
desgraça" diante de determinadas chefias, que me puseram no
ostracismo.
Não
foram poucas as vezes em que me consideraram ultrapassado e estive a
pique de ter a carreira seccionada abruptamente, até por uma questão
de preconceito. Mas, invariavelmente, passado um determinado tempo de
"inferno astral", ressurgi das cinzas, até para a minha
surpresa.
É
certo que vai chegar o momento em que não poderei mais "renascer".
Será quando a morte puser fim aos meus dias sobre a Terra e encerrar
esta maravilhosa aventura, que aprendi a amar com tamanha
intensidade, que é a vida.
Só
peço a Deus que quando isso ocorrer, aconteça o "renascimento"
pelo qual mais luto e me empenho: o da memória. O da lembrança das
gerações futuras de que existi, sofri, lutei, tive sucessos, sofri
derrotas, acalentei esperanças e experimentei amarguras. Mas que se
lembrem que perseverei, que tive fé, que construí esperanças, que
engoli frustrações e que, sobretudo, sempre tive disposição para
recomeçar…
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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