A
beleza na Miss que envelhece
* Por
Urariano Mota
A
imprensa fala hoje, entre um Trump e Temer, do próximo Concurso Miss
Universo 2017. Há leitores para tudo, em especial para o que
distrai das angústias da vida. E para as candidatas, agora,
tudo é agitação e vivas a seus encantadores corpos. Muito
bem, aplausos. Mas o que virá para elas quando chegar o futuro que
voa tão rápido nos próximos dias?
Penso
numa senhora que certa vez me concedeu uma entrevista. Ela, Vera
Lúcia Torres Bezerra, era então uma mulher a quem a educação e a
gentileza não deveriam perguntar a idade.
Em
uma discreta graça, que a maldade chamaria coquete, de passagem ela
contou que foi Miss em 1963 quando possuía apenas 16 anos! Ah. Pela
implacável aritmética em 2010, devíamos ter 2010 -1963 = 47. E
quarenta e sete mais dezesseis, sessenta e três. Mas isso era
segredo, ela falava com uma graça maior, porque mocinhas menores de
idade não poderiam participar do concurso. Então, pelas normas
legais, se ela foi Miss aos dezoito, estaria na ocasião por
volta dos sessenta e cinco anos. Mas a Lei e a cruel Aritmética
de nada sabem. Entendam, não é bem que as pessoas, as mulheres em
particular, e Vera Lúcia em especial, não sintam nem sofram
quarenta e sete mais dezesseis anos. Sentem, percebem, sofrem, se
desesperam ou se acomodam a esse inexorável. Não quero ser, nem
poderia em razão de natural deficiência, um Catão, um copiador de
procedimentos de Plutarco, a invocar ética dura e pesada moral. Mas
pessoas como Vera Lúcia penetram em nossa consciência como uma
antecipação do que seremos. O que nos salva ou nos salvará quando
tudo for perdido?
Ela
me fala com o rosto oculto em óculos escuros, embora seja noite no
Recife. Enquanto fala, enquanto expõe, ela vai desarmando, ela
vai desmontando os mais severos e sólidos preconceitos. O primeiro
deles é o de que as misses devem ser ignorantes, quando não se
resumem à mais simples burrice. Ela desmonta isso não bem por um
currículo exterior, de provas e títulos. Por esses documentos,
sabemos que ela é graduada em economia, com pós-graduação na
Fundação Getúlio Vargas. Por eles Vera Lúcia conhece a língua
francesa, e somente nisso ela já ultrapassaria a marca das Misses
que dizem ter lido O
pequeno príncipe,
mas são incapazes de saber quem foi Exupéry. Mas não é por isso
que a vemos inteligente. A sua inteligência se revela em documentos
não escritos, porque se pronuncia por um dom raro de observação,
quase diria, se isso não me fizesse mergulhar em outro preconceito:
ela percebe coisas dignas do olhar de um artista.
Vera
Lúcia Torres foi Miss Pernambuco no mesmo ano em que a Miss Brasil
foi Ieda Maria Vargas, em 1963. Ieda Vargas, mais adiante, conquistou
o título de Miss Universo. Mas isso ainda é currículo, o bom vem
depois. Quando perguntada sobre a mudança do padrão de beleza da
mulher, do seu tempo até hoje, Vera Lúcia responde, melhor dizendo,
observa: “Elas agora são mais altas, de fisionomia mais graúda”,
e explica o que é esse graúda:
“Boca
grande, olhos grandes. No meu tempo eu notava que a beleza era
angelical, mais delicada. E agora é mais a mulher graúda, magra
demais. Eu não sou a favor de gordura, mas eu acho que tem de ter as
curvas, porque se não fica igual ao corpo de um homem. Além das
pernas bonitas, tem que ter, no meu conceito, uma cinturinha e uma
curva. Isso não quer dizer um quadril grande, exagerado”.
E
leiam agora as medidas, no que parece um número de ouro da beleza do
Brasil em 1963:
“O
busto tinha que ter a medida dos quadris. A cintura igual às coxas…
Gisele Bündchen jamais seria miss. Na minha época se exigia muito
postura. E a de Gisele deixa muito a desejar, a maneira dela se
sentar, de se dirigir, de falar. Hoje se exige apenas que seja alta,
magra. Com as pernas finas, altas, as modelos mais parecem
equilibristas….”.
– O
que é a maneira de Gisele se sentar?
– Masculinizada.
Perna aberta, uma lá, outra cá….
E
vem então uma observação que se perdeu com o tempo, mas não a
seus olhos que me fitam por trás das lentes escuras:
– Na
minha época, as manequins, modelos que desfilavam, não podiam
rebolar, bambolear o quadril. Havia uma exigência, uma ordem de
caminhar roçando os pulsos no quadril, que era para não menear as
cadeiras.
A
esta altura, como se fizesse um só comentário, como uma continuação
que tem a ver com o modo de caminhar, a senhora Vera Lúcia observa e
traz uma notícia rara, até hoje não escrita em qualquer imprensa:
– A
Miss Universo de meu concurso, a Ieda Maria Vargas, não conseguia
juntar… ela só tirava retrato de lado, porque de frente não
juntava as pernas.
– Por
quê? As pernas dela eram muito volumosas?
– Não,
porque ela tinha um joelho grosso em cima, e aqui embaixo era um
buraco. Ela só tirava foto de lado, pode ver.
– Como
assim? eu não estou entendendo. A Miss Universo da época não
tirava retrato de frente, por quê? As coxas dela eram muito grossas,
e por isso não ficavam juntas?
– Era
uma abertura, com as pernas em arco. Era um desvio nas pernas,
cangalha, entende? Então ela, sabida, posava de lado. E maquiava,
porque tinha varizes. Ela passava uma base, um creme. A base escura
disfarçava as varizes.
Está
certo, são observações de mulher concorrente ao mesmo título,
poderia ser dito. Mas o que diríamos de um pintor que observa com
olhos argutos uma pintura de outro? Ou de um escritor que percebe as
fraturas da obra de um romancista? Diríamos que são observações
fruto da inveja? Ou mais precisamente que são notações da alma
treinada naquele ofício? O mais sensato é ouvi-la, principalmente
quando ela fala algo como:
– A
Miss Universo possuía um rosto muito bonito, a boca, os olhos cor de
mel… mas não tinha cultura nenhuma. Ele chegou aqui em Pernambuco
e saudou, “povo peruano”….
– Trocou
o Recife por Lima. Muito interessante. Isso foi no rádio ou na
televisão?
– Foi
quando ela voltou, como Miss Universo. Ali mesmo no aeroporto, com
todos os repórteres, fotógrafos, microfones.
Então
eu lhe falo com a voz mais traiçoeira que um entrevistador pode ter,
com um tom suave, pleno de intimidade e blandícia:
– Na
sua época, ser Miss era o mesmo que ser burra, não era?
Vera
Lúcia Torres não se engana com o tom nem se ofende com o conteúdo.
E como prova de que tal qualidade não se aplica a ela, responde:
– Diziam
que a única leitura de Miss era “O pequeno príncipe”. É claro
que, como eu era muito jovem na época, não poderia ter a cultura
que adquiri depois. Mas eu já gostava de ler. Os meus amigos eram
todos universitários, de medicina, de direito, teatro. Eu ia muito a
teatro, exposições, porque eu gostava.
E
o entrevistador, traiçoeiro:
– Exatamente.
Tem toda a razão.
– Mas
a mulher do meu tempo era preparada para esperar o príncipe
encantado, e se fosse Miss, o sonho era casar com um grande
empresário, um homem rico, porque era Miss…
– A
senhora casou com um empresário? – o traiçoeiro avança.
– Não.
– Nem
com um homem rico?
– Não.
Em primeiro lugar tinha que existir amor.
A
esta altura, a sua filha, uma jovem bonita de 24 anos, entra na
entrevista para completar a frase que a mãe não quis dizer:
– Ela
casou com um homem pobre e feio.
– Verdade?
E
a filha:
– Era
pobre, feio, horrível. E assim, cheio de homem rico e lindo atrás
de mãezinha.
Ao
que explica a mãe:
– Uma
das coisas que eu mais admiro no ser humano é a inteligência. E a
bondade.
– Sério?
A
esta altura o entrevistador se foi, partiu, porque deixou de ter o
domínio da entrevista, porque foi destruído em seu maquiavelismo.
Deixou de conduzir para ser conduzido. Há um capítulo não escrito
na vida dos entrevistadores que mostra a sua derrota em razão de um
comportamento inesperado. Nesse capítulo, em uma das suas divisões,
em algum lugar se inscreve que entrevistadores feios são
conquistados por misses que não se casam com grandes empresários.
Mesmo que essas misses não mais sejam formosas, mesmo que tenham
passado pela curva dos sessenta anos. Ou até mesmo por isso, diria
até, com mais razão por se encontrarem nessa idade. Não sei se
isso é bem perversão ou uma busca do espírito, só tu, puro
espírito. De qualquer forma, talvez uma perversão, que nem precisa
dizer que é romântica, porque é do caráter do romântico um
semelhante desvio. O fato é que ex-misses como a senhora Vera Lúcia
Torres Bezerra possuem um travo, um amargo de ex-combatente, de quem
passou pela experiência de guerra. E, no entanto, esse travo é bom.
Imagino que isso se dá em razão de ser uma vitória dos valores em
que acreditamos, o do valor que é o valor, o da vitória do belo nas
condições mais infames. Senhoritas, misses, que em um mundo de
corpo-mercadoria em um açougue de carnes, que reagem e vivem como
pessoa e gente. E que se casam ao fim com indivíduos cujo maior
patrimônio é a qualidade interior. Mas isso não é um conto de
fadas, porque vem outra surpresa.
Miss
Vera Lúcia Torres Bezerra está diante de mim para tentar vender uma
carta do poeta Olavo Bilac, que guarda e guardou há muito tempo. O
entrevistador se foi. Miss Vera Lúcia Torres Bezerra nem precisava
dizer, como disse, que estudou Economia porque era admiradora de
Celso Furtado. Nem mesmo, em um golpe mortal, definitivo, que esteve
ao lado daqueles doidos e perseguidos pela ditadura no Brasil.
Derrotado, miro-lhe então os olhos despidos das lentes escuras, e
percebo-lhe as rugas, o pescoço, o tecido mole. Mas, coisa estranha,
percebo ainda assim que os anos por ela passaram e não alcançaram a
sua decadência. Por que esse paradoxo? Talvez porque o
espírito, quando sobrevive, suporta melhor o corpo que envelhece.
Não importa quantos anos se tenham passado, tenho vontade imensa de
lhe dizer. E me calo. Por isso escrevo agora, porque os escritores
somos muito valentes no silêncio e à distância: Vera Lúcia Torres
Bezerra, você ainda é a nossa musa. O tempo passou para todos, Miss
Pernambuco 1963.
*
Escritor, jornalista,
colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La
Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no
Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de
Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom
Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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