Portela,
o rio que não passa de Paulinho da Viola
* Por
Urariano Mota
Em tempos só de
angústia, a melhor notícia da semana foi a vitória da escola de samba Portela
no carnaval carioca. Devo dizer, o melhor da notícia foi a circunstância rara
dessa vitória. A Portela venceu com a música “Foi um rio que passou em minha
vida” de Paulinho da Viola no enredo. E
foi campeã, depois de 33 anos.
E o que fala Paulinho
da Viola desse momento raro? À sua maneira modesta, que só quer falar das
coisas do mundo, minha nega, ele declara:
“Eu fico muito feliz e honrado com essa referência. Na verdade, o enredo
tratava de rios do mundo, tinha esse samba, de repente, foi um motivo de
inspiração, É uma coisa que me honra e eu fiquei muito feliz com isso. Eu
continuo dizendo que o mérito é da turma que desfilou, que desenvolveu o enredo
e que fez um enredo como pretendia, que era tratar dos rios do mundo. Era o rio
Portela e os rios do mundo. Isso que é legal”.
Então voltou o tempo
de Foi um rio que passou em minha vida, à maneira de toda obra de arte, que
está sempre renascendo. Eu, que não sou adivinho, mas sou muito metido a
adivinhar o futuro, falei pra minha mulher na terça-feira em frente ao Mercado
Boa Vista no Recife: “se fosse compositor, eu queria ter composto ‘Foi um rio
que passou em minha vida’”. Rapaz metido, louco e pretensioso, eu não queria
mais nada. Mas o que entre um frevo e outro eu queria dizer era isto a
seguir.
Quando "Foi um
rio que passou em minha vida" se lançou em 1970, eu e meus amigos éramos
estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha, praia do
litoral de Pernambuco. Achávamos então que a revolução socialista seria a coisa
mais natural do mundo. E por ser assim tão natural, nada demais também que
ouvíssemos, plural de modéstia, porque devo dizer: não se espantem, eu ouvi,
escutei sem parar e sem cansar mais de 41 vezes seguidas, contínua e
incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio que passou, foi um rio que
passou, no toca-discos ao lado de uma esteira.
Naquele ano, e por que não ainda?, todos nós éramos Paulinho, nessa
estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos
nós repetíamos, e repetimos, e repetimos depois a cantar na areia que "meu
coração tem mania de amor, e amor não é fácil de achar". À maneira de
cantar, gritávamos esses versos então.
Depois, morando na
Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era Simplesmente Maria.
"Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente,
Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu
destino, Maria...". Nesse tempo, sempre compreendíamos o "faz dele a
tua ida" como um "faz dele a tua ira". Enquanto subíamos a
escada para um quartinho isolado no alto, da televisão da sala vinha a música,
tema de uma telenovela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem
mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe
traiçoeiro da polícia que queria nos matar, sem Maria que nos velasse.
Agora, de volta a 2017, o compositor fala:
“Quero parabenizar os
meus companheiros. Na verdade, todo mérito desse desfile, essa vitória, eu acho
que tem que ser creditada a pessoas como Monarco, Velha Guarda, como essa turma
que segurou essa barra aí. Todos sabem que esses anos todos que a Portela vem
lutando pra reconquistar o espaço. Isso que aconteceu hoje foi uma vitória. Eu
estou muito feliz”.
Isso é bem Paulinho da
Viola, observo. Quero dizer: ele é muitos e vários compositores, é uma soma de
gerações de compositores da Velha Guarda do samba. Visto assim do alto, para
melhor vê-lo, o compositor Paulinho da Viola é uma reencarnação de sambistas
que se foram, se por reencarnação compreendemos as folhas secas que ressurgem
no verde, queremos dizer, folhas secas que se fizessem azuis, vermelhas,
brancas, negras, quero dizer, por fim, se por reencarnação compreendemos as
gerações que voltam reinventadas, algo como um 1920 mudado em 2020, como um 12
mudado para um certo 21, ou: como se Nelson Cavaquinho, Cartola, Wilson
Batista, Nelson Sargento, Candeia, sem deixarem de ser eles mesmos fossem um
outro, que vem a ser um compositor nascido hoje, a alma dessa gente renascida.
Poderia ser dito que
regravar velhos sambas, como Paulinho faz, é simples: basta pôr a voz e gravar.
A resposta a isso, sentimos a esta altura, quase nos cala. Falar de um
compositor de música somente com palavras não é fala precisa, tiro na mosca.
Porque teríamos que falar a quem nos lê: - "Ouça Duas horas da manhã, é
Nelson Cavaquinho e é ao mesmo tempo Paulinho, o mesmo Paulinho de Sol e Pedra,
e de Coração leviano. Ouça". Porque dizer que ele faz de composições da
Velha Guarda composições suas, ou dizer que ele busca na Velha Guarda a própria
voz cantada antes, não seria claro e preciso para quem simplesmente nos lê sem
a experiência e a felicidade da música de Paulinho. Façamos então um pacto com
o mais simples: falemos do tempo de Paulinho da Viola que volta agora, 47 anos
depois do samba que o consagrou
O tempo de Paulinho
voltou. A Portela desfila soberana num rio que não para de passar.
*
Escritor, jornalista, colaborador do
Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha.
Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife”
e “A mais longa juventude”. Tem inédito
“O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Quando soube que o desfile da Portela tinha sido bom, busquei no Google e vi maravilhas, deduzindo que seria, e de fato foi campeã.
ResponderExcluir