“É
sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar” (Gilberto Gil)
* Por
Mara Narciso
A algazarra infantil é
festa, mas pode ser tensão. Em alguns lugares se torna angustiante, e até mesmo
explosiva. Depois de aceso o rastilho de pólvora, apenas tendo maior agilidade
que o fogo para poder apagá-la. Correr, acelerar, antecipar-se a todos os
gestos de uma criança arisca, elétrica, agitada, um avião cujo motor se
encontra em constante carga máxima, prestes a decolar. E muitas vezes decola.
A situação ocorre na
sala de espera de um consultório médico, e a demora para a consulta se alonga.
Durante muitos minutos pode-se ouvir o alarido da criança e o corre-corre da
mãe, aflita, segurando, contornando, acalmando, distraindo, negociando,
colocando no colo, e o bólido escapulindo, uma vez depois da outra.
A rejeição das pessoas
é tão natural quanto fazer calor no verão.
A divisão da tarefa é desigual, mas o pai entra no jogo, vai atrás, pega
pela mão, coloca no colo, para em seguida a criança escorregar por entre suas
pernas e fugir.
Todo o ambiente fica
em estado de perturbação, e o objeto do desassossego é visto com antipatia. De
lá de dentro, minha expectativa cresce, pois, sem ver nada, além do barulho, já
adivinho todos os movimentos.
Então, a porta se
abre, e a família entra em cena: o pai, a mãe e a criança, que mal vejo, pois
passa como um raio até o fundo da sala, para mexer no ar-condicionado portátil.
A mãe tira a mão dele de dentro da máquina. É um menino. O pai vem se consultar.
A conversa começa, sendo interrompida muitas vezes. Para que não se perca mais
tempo, disfarço, finjo que nada percebo, faço de conta que não vejo a confusão
instalada, que impossibilita qualquer organização de pensamento. Para quê
acrescentar mais interrupções às muitas que já estão acontecendo?
Feitas as queixas e
esclarecimentos, durante os quais ouvi várias vezes a criança ter seu nome
chamado, e ser seguido por ações como busca de cá, agarra de lá, pula do colo
da mãe para o colo do pai numa situação repetitiva, naquele instante, do canto
do olho, vejo que está com a mãe. O menino se mexe como minhoca para escapar
dos braços dela, que, aparentando calma, com voz suave, tenta controlar o
filho.
Ele escapa e vai até a
mesa de exame, pegando uma lupa dentro da gaveta. A mãe ralha, mas eu deixo, só
não garanti se ele veria alguma coisa, pois a lupa estava arranhada. Correndo
com o objeto, já está do outro lado da sala. É quando fixo meus olhos pela
primeira vez no rosto do menino. Sabedora do nome, mas, como modo de conversa,
pergunto como ele se chama, e ao ouvir a resposta, falo: mas esse Heitor sabe
ser bonito! O menino para e sorri, olhando para mim. A minha irritabilidade
some e uma onda de paz desce sobre o grupo. Ocorre uma transformação deflagrada
pelo meu gesto de boa vontade e acolhimento. O que era transtorno passa a ser
uma energia boa. A compreensão sobre o que era e o que se tornou, vem de dentro
de mim. A inquietude exagerada, a hipercinesia perturbadora e sem sentido passa
a ser a agitação de uma criança alegre, sorridente, precisando de atenção,
coisa que tem em tempo integral, para não se acidentar.
Aos dois anos e sete
meses, pouco mais do que um neném, no colo da mãe, pede uma caneta e quer
escrever nas costas dos exames do pai. Rabisca algumas garatujas. Soube que já
está na escolinha, e só consegue parar quando brinca com o celular. Segura a
caneta com a mão esquerda, como eu (que sofro de tendinite há anos e mal
consigo escrever), assim como o meu filho Fernando, também canhoto, que entra
na sala, ao final, para anotar os pedidos de exames para mim. Ele próprio, um
hiperativo diagnosticado aos quatro anos e tratado desde os dois, mal vê a
criança, fala: que gracinha! Um menino hiperativo e carismático!
O ciclo se fecha, para
alívio dos pais.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional,
membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico,
ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Um relato sobre hiperatividade que tinha tudo para ser clínico, vindo de uma médica, mas torna-se comovente - vindo de uma mãe. Sutil, mas muito pertinente, a analogia entre o teor do texto e a frase da música do Gil. Bacana, Mara!
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