Coisas antigas
* Por
Rubem Braga
Já tive muitas capas e
infinitos guarda-chuvas, mas acabei me cansando de tê-los e perdê-los; há anos
vivo sem nenhum desses abrigos, e também, como toda gente, sem chapéu. Tenho
apanhado muita chuva, dado muita corrida, me plantado debaixo de muita
marquise, mas resistido. Como geralmente chove à tarde, mais de uma vez me
coloquei sob a proteção espiritual dos irmãos Marinho, e fiz de O Globo meu
paraguas de emergência.
Ontem, porém, choveu
demais, e eu precisava ir a três pontos diferentes de meu bairro. Quando o moço
de recados veio apanhar a crônica para o jornal, pedi-lhe que me comprasse um
chapéu-de-chuva que não fosse vagabundo demais, mas também não muito caro. Ele
me comprou um de pouco mais de trezentos cruzeiros, objeto que me parece bem
digno da pequena classe média, a que pertenço, (Uma vez tive um delírio de
grandeza em Roma e adquiri a mais fina e soberba umbrella da Via Condotti;
abandonou-me no primeiro bar em que entramos; não era coisa para mim.)
Depois de cumprir meus
afazeres voltei para casa, pendurei o guarda-chuva a um canto e me pus a
contemplá-lo. Senti então uma certa simpatia por ele; meu velho rancor contra
guarda-chuvas cedeu lugar a um estranho carinho, e eu mesmo fiquei curioso de
saber qual era a origem desse carinho.
Pensando bem, ele
talvez derive do fato, creio que já notado por outras pessoas, de ser o
guarda-chuva o objeto do mundo moderno mais infenso a mudanças. Sou apenas um
quarentão, e praticamente nenhum objeto de minha infância existe mais em sua
forma primitiva. De máquinas como telefone, automóvel, etc., nem é bom falar.
Mil pequenos objetos de uso mudaram de forma, de cor, de material; em alguns
casos, é verdade, para melhor; mas mudaram.
O guarda-chuva tem
resistido. Suas irmãs, as sombrinhas, já se entregaram aos piores
desregramentos futuristas e tanto abusaram que até caíram de moda. Ele
permaneceu austero, negro, com seu cabo e suas invariáveis varetas. De junco
fino ou pinho vulgar, de algodão ou de seda animal, pobre ou rico, ele se tem
mantido digno.
Reparem que é um dos
engenhos mais curiosos que o homem já inventou; tem ao mesmo tempo algo de
ridículo e algo de fúnebre, essa pequena barraca ambulante.
Já na minha infância
era um objeto de ares antiquados, que parecia vindo de épocas remotas, e uma de
suas características era ser muito usado em enterros. Por outro lado, esse
grande acompanhador de defuntos sempre teve, apesar de seu feitio grave, o
costume leviano de se perder, de sumir, de mudar de dono. Ele na verdade só é
fiel a seus amigos cem por cento, que com ele saem todo dia, faça chuva ou faça
sol, apesar dos motejos alheios; a estes, respeita. O freguês vulgar e
ocasional, este o irrita, e ele se aproveita da primeira distração para fugir.
Nada disso,
entretanto, lhe tira o ar honrado. Ali está ele, meio aberto, ainda molhado,
choroso; descansa com uma espécie de humildade ou paciência humana; se tivesse
liberdade de movimentos não duvido que iria para cima do telhado quentar sol,
como fazem os urubus.
Entrou calmamente pela
era atômica, e olha com ironia a arquitetura e os móveis chamados funcionais:
ele já era funcional muito antes de se usar esse adjetivo; e tanto que a
fantasia, a inquietação e a ânsia de variedade do homem não conseguiram
modificá-lo em coisa alguma.
Não sei há quantos
anos existe a Casa Loubet, na Rua Sete de Setembro. Também não sei se seus
guarda-chuvas são melhores ou piores que os outros; são bons; meu pai os
comprava lá, sempre que vinha ao Rio, herdei esse hábito.
Há um certo conforto
íntimo em seguir um hábito paterno; uma certa segurança e uma certa doçura.
Estou pensando agora se quando ficar um pouco mais velho não comprarei uma
cadeira de balanço austríaca. É outra coisa antiga que tem resistido, embora
muito discretamente. Os mobiliadores e decoradores modernos a ignoram; já se
inventaram dela mil versões modificadas, mas ela ainda existe na sua graça e
leveza original. É respeitável como um guarda-chuva me convém para resguardo da
cabeça encanecida, e talvez o embalo de uma cadeira de balanço dê uma cadência
mais sossegada aos meus pensamentos, e uma velha doçura familiar aos sonhos de
senhor só.
*
Um dos principais cronistas brasileiros.
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