Fidel Castro, presente
* Por
Urariano Mota
Acordei de madrugada,
depois de uma noite insone. Pior dizendo, me levantei da cama depois de acordas
e adormeces sucessivos. As pessoas do povo de Água Fria, meu amado bairro do
Recife, diriam que essa instabilidade era um aviso, e com isso queriam dizer,
mensagens que nos chegam sem que a consciência tome tento. Então me levantei,
abri o computador e recebi o que eu não queria: “Fidel morre aos 90 anos”. O que é isso? Sabemos, claro, que mais cedo
ou mais tarde ia acontecer, até porque é da nossa natureza a mortalidade, até
porque Fidel atingira uma idade que não comportava a surpresa da morte, até
porque... besteira. Olho, torno a ler, volto para a tela e só consigo falar: porra!
Mas porra! só se
escreve como uma interjeição. O que dizer do golpe desta manhã? Pensei, penso e percebo que o melhor será a
retomada de trechos do que escrevi sobre o comandante quando ele completou 89
anos. Me calo e copio.
As notícias não falam
que Fidel Castro é uma pessoa mítica, um homem que se tornou lenda e símbolo. Sobre ele escreveu o gênio universal das
Américas, de nome Gabriel García Márquez:
“Raras vezes Fidel
cita frases alheias, nem em conversas nem na tribuna, a não ser as frases de
José Martí, que é seu autor de cabeceira. Conhece a fundo os vinte e oito volumes
da sua obra...”
Seu auxiliar supremo é
a memória, e a usa até o abuso para apoiar discursos ou palestras íntimas com
raciocínios invisíveis e operações aritméticas de uma rapidez incrível. Sua
tarefa de acumulação informativa começa desde que acorda. Toma o café da manhã com não menos de
duzentas páginas de notícias do mundo inteiro.
Um homem de costumes
austeros e ilusões insaciáveis, com uma educação formal às antigas, de palavras
cuidadosas e modos sutis, incapaz de conceber nenhuma ideia que não seja
descomunal. Sonha que seus cientistas encontrem o remédio definitivo contra o
câncer, e criou uma política exterior de potência mundial em uma ilha sem água
doce, oitenta e quatro vezes menor que o seu inimigo principal. É tal o pudor
com que protege sua intimidade que sua vida privada terminou por ser o enigma
mais hermético da sua lenda….
Eu tenho escutado
Fidel em suas escassas horas de saudades quando ele recorda as manhãs do campo
de sua infância rural, a namorada da juventude que se foi, as coisas que
poderia ter feito de outra maneira para ganhar mais tempo para a vida.
Em belo artigo
publicado no Granma
http://www.granma.cu/reflexiones-fidel/2015-08-13/la-realidad-y-los-suenos,
para os seus 89 anos, ele próprio, Fidel Castro, nos falou:
“Escrever é uma forma
de ser útil, se consideramos que nossa sofrida humanidade deve ser mais e
melhor educada ante a incrível ignorância que nos envolve a todos, com exceção
dos pesquisadores que buscam nas ciências uma resposta satisfatória….
Os Estados Unidos
devem a Cuba indenizações equivalentes a
danos, que ascendem a muitos e valiosos milhões de dólares como denunciou nosso
país com argumentos e dados irrebatíveis ao longo de suas intervenções nas Nações
Unidas.
Como foi expresso com
toda clareza pelo Partido e o Governo de Cuba, em prova de boa vontade e da paz
entre todos os países deste hemisfério e do conjunto de povos que integram a
família humana, e assim contribuir para garantir a sobrevivência de nossa
espécie no modesto espaço que nos corresponde no universo, não deixaremos nunca
de lutar pela paz e o bem-estar de todos os seres humanos, independentemente da
cor da pele e do país de origem de cada habitante do planeta, assim como pelo
direito pleno de todos a possuir ou não una crença religiosa.
A igualdade de todos
os cidadãos à saúde, educação, trabalho, alimentação, segurança, cultura,
ciência, e bem-estar, quero dizer, os
mesmos direitos que proclamamos quando iniciamos nossa luta, mais os que venham de nossos sonhos de
justiça e igualdade para os habitantes de nosso mundo, é o que desejo a todos.
Aos que comungam em tudo ou em parte com as mesmas ideias, ou muito superiores,
mas na mesma direção, lhes dou meus agradecimentos, queridos compatriotas”.
Eu penso que Fidel
Castro é imortal. Mas o que é mesmo essa tal de imortalidade? Tentei esclarecer
o fenômeno em página que escrevi para o romance A mais longa juventude, ainda
inédito:
A vida é o que
resiste. Que contradição mais estranha, eu descubro e me digo: a vida, tão
breve, é tudo que resiste. Mas que paradoxo: se ela está no tempo que se dirige
para o fim, se ela é naquilo que deixará de ser, como sobreviverá à
Irresistível, que é mais conhecida pelo nome de morte? A resposta é que existe
uma resistência na duração do instante, que ocorre na intensidade, luz, flor ou
cintilação. É como o brilho da luz de uma estrela distante, que recebemos
agora, “agora”, se fosse possível um agora simultâneo, mas que num paradoxo já
não existe. O que vemos agora já não mais existe, tamanha foi a distância que a
luz percorreu no espaço escuro até ferir a nossa percepção. Mas isso é no
terreno físico, mecânico, do reino da velocidade da luz de 300.000 quilômetros
por segundo. O que desejo dizer é mais fino. A resistência, que é vida, se
processa na brevidade pelas ações e trabalhos dos que partiram e partem. Mas
nós, os que ficamos, não estamos na estação à espera do nosso trem. Nós somos
os agentes dessa duração, esse trem não chegará com um aviso no alto-falante,
“atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora, entre”. Até porque talvez
chegue sem aviso, e não é bem um transporte. O trem é sempre de quem fica. E
porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência do fugaz. Nós só
vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que
transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência
de matusaléns decrépitos, nós só alcançamos a imortalidade pelo que foi mortal,
mortal, mortal, e sempre mortal não morreu. Aquilo que num poema Goethe gravou
em pedra:
“Deve-se mover, obrar
criando
Tomar sua forma, ir-se
alterando
Momento imóvel é
aparência.
Na eternidade em
disparada
Que tudo arruína e
leva ao nada
Somente o ser tem
permanência”
Penso que é nessa
forma, a da permanência do ser, a da vida que é resistência, que podemos ver a
imortalidade de Fidel Castro. Ele se tornou imortal não só agora. Ele se tornou antes, desde a derrubada de
Fulgencio Batista e da revolução na ilha que virou um continente. Fidel passa
por este presente e resistirá com sua
vida no tempo.
Assim foi o que
escrevi nos seus 89 anos. Mas hoje, no Face, apenas consegui dizer: começa um
novo tempo para nós. Nós não queríamos que chegasse tão cedo.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros
A coerência foi a maior marca de Fidel. Quisera que todos pudessemos tê-la naquele grau.
ResponderExcluir