quarta-feira, 29 de junho de 2016

O pregador que não falava ao vento



O padre Antonio Vieira, um dos melhores, senão o melhor dos estilistas de língua portuguesa, estranhamente é pouco lido até por eruditos, por mestres de Literatura e por pessoas de reconhecido bom gosto literário. Atribuo este fato a uma série de fatores, como pouca divulgação, falta de informação adequada, mas, principalmente, ao preconceito. No entanto foi alguém que buscou atingir não só o intelecto das pessoas a quem pregava, mas ao seu âmago. Não por acaso afirmou, em certa ocasião: “Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”. E estas ele elaborou em profusão!

Passei por algumas experiências que comprovam a minha impressão de preconceito em relação a Antonio Vieira. Sempre que posso, em palestras que profiro e em contato com jovens com pretensão a se tornarem escritores, recomendo a leitura dos “Sermões”. Justifico explicando que seu autor, entre outras tantas virtudes, é modelo a ser seguido da utilização de metáforas não apenas em poesia (que não era seu caso, pois não se tratava de um poeta), mas também em prosa. Alguns (poucos) atendem à recomendação e, invariavelmente, confessam-se entusiasmados com a escrita do emérito pregador. Outros tantos, todavia, resistem e fogem das preciosas lições – senão de moral e de fé, pelo menos do perito manejo do idioma – com desculpas sem pé e nem cabeça.

Arrolam uma série de pretextos – a meu ver inconsistentes e pueris – para justificar o motivo de se recusarem a ler esses textos que tanto proveito lhes trariam. A maioria argumenta que, por razões de opção religiosa, por não ser católica, ou por não ter nenhuma crença  e ser atéia (condição com a qual não concordo, mas respeito, por se tratar de questão de foro íntimo de cada um), não se interessa por “assuntos de religião”. Ocorre que os sermões de Vieira, embora destinados (óbvio) a fieis da Igreja a que servia, não tratam, apenas, de questões de fé. Trazem profundas mensagens filosóficas.

São lições de vida que cabem tanto a católicos quanto a evangélicos. Nada têm a ver com a crença de cristãos (com suas milhares de denominações), muçulmanos, budistas etc.etc.etc. . Transmitem, sobretudo, princípios universais de humanidade, que deveriam nortear os homens, não importa qual seja a sua crença. Ademais, salvo uma ou outra exceção em que determinado sermão é especificamente de dogma católico, a imensa maioria traz, em algum ponto, conceitos filosóficos, antropológicos, enfim humanos, úteis para todos. Separados, podem ser lidos como autênticos ensaios dessas disciplinas. E, o que é melhor, expostos numa linguagem clara, simples, objetiva, direta, sem jargões e nem citações cansativas e inúteis e rigorosamente corretos do ponto de vista lingüístico.

Ainda assim, há quem os considere “retóricos e discursivos”. Tinham, porém, que ser assim. Os sermões de Vieira não foram escritos para “leitores”, mas para “ouvintes”. Originalmente, foram concebidos como roteiros para organizar a fala de um orador, ou pregador, como queiram. Tinham que primar pela clareza e simplicidade, pois destinavam-se a pessoas que não sabiam ler, numa época em que a maioria da população mundial era analfabeta. Vieira tinha que recorrer a metáforas para o pleno entendimento dos fieis das mensagens que passava. Estas, todavia, não podiam ser complexas e nem surreais. Precisavam ser simples, sem serem simplórias. E ele utilizou-as com uma perícia quase inigualável.

Exemplo? Raios, relâmpagos e trovões, como neste trecho do “Sermão da Sexagésima”: “A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração: com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos e o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador: um trovão do céu, que assombre e faça tremer o mundo”. Querem outro? Palavras e ecos: “Tudo o que entra pelos ouvidos faz eco no coração, e conforme está disposto o coração, assim se formam os ecos”. Ou verdade e justiça: “A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não: a cada um dá o seu, como justiça”.

Tratou, ainda, da formosura e utilidade da luz: “Há coisa mais formosa, há coisa mais útil, há coisa mais necessária no mundo, que a luz? Pelo contrário, há coisa mais feia, há coisa mais horrenda, há coisa mais inútil, há coisa mais cheia de inconvenientes, que as trevas? Não são as trevas a capa dos latrocínios, terceiras dos adultérios, as cúmplices e consentidoras dos maiores insultos, das maiores enormidades que se cometem no mundo? Pois como é possível que homens com olhos e com entendimento, antepusessem as trevas à luz?” E vai por aí afora.

Citar Vieira, como se vê, é uma “profilaxia” da inteligência, uma iluminação da alma, um banquete de sabedoria. Seus sermões, desde que nos toquem, devolvem-nos a humildade e nos fazem refletir sobre o que de fato somos. E, principalmente, que tudo, absolutamente tudo passa. É o que nos lembra, neste trecho de um de seus tantos sermões: “Esta casa de que vos jactais ser senhor, por que é vossa? Porque a herdei de meu pai; e vosso pai de quem a houve? Do meu avô; e de quem a houve vosso avô? De meu bisavô; e vosso bisavô de quem? De meu trisavô. Já não tendes palavras com que prosseguir de quem mais foi, e a quem mais passou essa casa, que chamais vossa. Pois assim como ela passou, e vossos antepassados passaram por ela, assim ela e vós também haveis de passar. Por este modo sem firmeza, nem estabilidade alguma, estão sempre passando neste mundo as casas, as quintas, as herdades, os morgados: uns, porque os faz passar a morte, outros, porque os manda passar a justiça, outros, porque os convida a passar a riqueza dos que os compram, outros, porque os obriga a necessidade dos que os vendem, outros, porque a força e o poder os rouba e senhoreia por violência; em suma, que não há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra na terra, que não esteja sempre passando, porque tudo passa”.

Boa leitura.


O Editor.

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