Lenita
* Por
Júlio Ribeiro
O doutor Lopes Mattoso
não foi precisamente o que se pode chamar um homem feliz.
Aos dezoito anos de
sua vida, quando apenas tinha completado o seu curso de preparatórios, perdeu
pai e mãe com poucos meses de intervalo.
Ficou-lhe como tutor
um amigo da família, o coronel Barbosa, que o fez continuar com os estudos e
formar-se em direito.
No dia seguinte ao da formatura, o honesto
tutor passou-lhe a gerência da avultada fortuna que lhe coubera, dizendo:
- Está rico, menino,
está formado, tem um bonito futuro diante de si. Agora é tratar de casar, de
ter filhos, de galgar posição. Se eu tivesse filha você já tinha noiva; não
tenho, procure-a você mesmo.
Lopes Mattoso não
gastou muito tempo em procurar: casou-se logo com uma prima de quem sempre
gostara, e junto à qual viveu felicíssimo por espaço de dois anos.
Ao começar o terceiro,
morreu a esposa, de parto, deixando-lhe uma filhinha.
Lopes Mattoso vergou à
força do golpe, mas, como homem forte que era, não se deixou abater de vez:
reergueu-se e aceitou a nova ordem de coisas que lhe era imposta pela
imparcialidade brutal da natureza.
Arranjou de modo
seguro seus negócios, mudou-se para uma chácara que possuía perto da cidade,
segregou-se dos amigos, e passou a repartir o tempo entre o manusear de bons
livros e o cuidar da filha.
Esta, graças às
qualidades da ama que lhe foi dada, cresceu sadia e robusta, tornando-se desde
logo a vida, a nota alegre do eremitério que se constituíra Lopes Mattoso.
Visitas de amigos raras
tinha ele, porque mesmo não as acoroçoava: convivência de famílias não tinha
nenhuma.
Leitura, escrita,
gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês,
espanhol, natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso Lopes Mattoso
exercitou a filha, porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos
portugueses, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de
mais seleto na literatura do tempo.
Aos quatorze anos
Helena ou Lenita, como a chamavam, era uma rapariga desenvolvida, forte, de
caráter formado e instrução acima do vulgar.
Lopes Mattoso entendeu
que era chegado o tempo de tornar a mudar de vida, e voltou para a cidade.
Lenita teve então
ótimos professores de línguas e de ciências; estudou o italiano, o alemão, o
inglês, o latim, o grego; fez cursos muito completos de matemáticas, de
ciências físicas, e não se conservou estranha às mais complexas ciências
sociológicas. Tudo lhe era fácil, nenhum campo parecia fechado a seu vasto
talento.
Começou a aparecer, a
distinguir-se na sociedade.
E não tinha nada de
pretensiosa, bas-bleu: modesta, retraída mesmo, nos bailes, nas reuniões em que
não de raro se achava, ela sabia rodear-se de uma como aura de simpatia,
escondendo com arte infinita a sua imensa superioridade.
Quando, porém, algum
bacharel formado de fresco, algum touriste recém-vindo de Paris ou de Nova York
queria campar de sábio, queria fazer de oráculo em sua presença, então é que
era vê-la. Com uma candura adoravelmente simulada, com um sorriso de desdenhosa
bondade, ela enlaçava o pedante em uma rede de perguntas pérfidas, ia-o pouco a
pouco estreitando em um círculo de ferro e, por fim, com o ar mais natural do
mundo, obrigava-o a contradizer-se, reduzia-o ao mais vergonhoso silêncio.
Os pedidos de
casamento sucediam-se: Lopes Mattoso consultava a filha.
- É ir despedindo-os,
meu pai, respondia ela. Escusa que me consulte. Já sabe, eu não me quero casar.
- Mas, filha, olha que
mais cedo ou mais tarde é preciso que o faças.
- Algum dia talvez, por
enquanto não.
- Sabes que mais?
estou quase convencido de que errei e muito na tua educação: dei-te
conhecimentos acima da bitola comum e o resultado é ver-te isolada nas alturas
a que te levantei. O homem fez-se para a mulher, e a mulher para o homem. O
casamento é uma necessidade, já não digo social, mas fisiológica. Não achas,
decerto, homem algum digno de ti?
- Não é por isso, é
porque ainda não sinto a tal necessidade do casamento. Se eu a sentisse
casar-me-ia.
- Mesmo com um homem
medíocre?
- De preferência com
um homem medíocre. Os grandes homens em geral não são bons maridos. Demais, se
os tais senhores grandes homens escolhem quase sempre abaixo de si, porque eu
que, na opinião de papai, sou mulher superior, não faria como eles, escolhendo
marido que me fosse inferior?
- Sim, para teres uns
filhos palermas...
- Os filhos puxariam
por mim: a filosofia genésica ensina que a hereditariedade direta do gênio e do
talento é mais comum da mãe para o filho.
- E do pai para a
filha, não?
- Decerto, e por isso
é que sou o que sou.
- Lisonjeira!
- Lisonjeiro é papai,
que quer à fina força que eu seja moça prodígio, e tanto tem feito que até eu
já começo a acreditar. Voltando ao assunto, sobre casamento temos conversado,
não falemos mais nisso.
E não falaram. Lopes
Mattoso ia despedindo os pretendentes com grande afetações de mágoa - que a
menina não queria casar, que era uma original, que ele bem a aconselhava, mas
que era trabalho baldado, mil coisas enfim que suavizassem a repulsa.
Sempre no mesmo teor
de vida chegou Lenita aos vinte e dois anos, quando um dia amanheceu Lopes
Mattoso a queixar-se de um mal-estar indescritível, de uma opressão fortíssima
no peito. Sobreveio um acesso de tosse, e ele morreu de repente sem haver tempo
de chamar um médico, sem coisa nenhuma. Matara-o uma congestão pulmonar.
Lenita quase
enlouqueceu de dor: o imprevisto do sucesso, o vácuo súbito e terrível que se
fez em torno dela, a superioridade e cultura do seu espírito que refugia a
consolação banais, tudo contribuía para acendrar-lhe o sofrimento.
Dias e dias passou a
infeliz moça sem sair do quarto, recusando-se a receber visitas, tomando
inconscientemente, a instâncias dos fâmulos, algum ligeiro alimento.
Por fim reagiu contra
a dor: pálida, muito pálida nas suas roupas de luto, ela apareceu aos amigos do
pai, recebeu os pêsames fastidiosos do estilo, procurou por todos os meios
afazer-se à vida solitária que se lhe abria, vida tristíssima, erma de afetos,
povoada de lembranças dolorosas. Tratou de dar direção conveniente aos negócios
da casa, e escreveu ao coronel Barbosa, avisando-o de que se retirava
temporariamente para a fazenda dele.
Os negócios da casa
nenhuma dificuldade ofereciam: a fortuna de Lopes Mattoso estava quase toda em
apólices e ações de estradas de ferro. Sendo Lenita, como era, filha única, não
havia inventário, não havia delonga alguma judicial.
A resposta do coronel
Barbosa não se fez esperar - que fosse, que fosse quanto antes; que sua velha
esposa entrevada folgara doidamente com a notícia de ir ter junto de si uma
moça, uma companheira nova; que com eles só morava um filho único, homem já
maduro, casado, mas desde muito separado da mulher, caçador, esquisitão, metido
consigo e com os seus livros; enfim que se não demorasse com aprontações, que
atabulasse, e que marcasse o dia para ele a ir buscar.
Uma semana depois
estava Lenita instalada na fazenda do velho tutor de seu pai: tinha levado
consigo o seu piano, alguns bronzes artísticos, alguns bibelots curiosos e
muitos livros.
(A carne, capítulo 1)
*
Jornalista, filólogo e romancista, membro da Academia Brasileira de Letras.
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